I Ultra Trail da Serra de São Mamede

Summary Paisagem foi o que não faltou no passado sábado. Paisagem bela, bruta, selvagem e domesticada, de cortar a respiração. Paisagem anterior ao homem
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“O que mais há na terra, é paisagem. Por muito que do resto lhe falte, a paisagem sempre sobrou, abundância que só por milagre infatigável se explica, porquanto a paisagem é sem dúvida anterior ao homem, e apesar disso, de tanto existir, não se acabou ainda.”
- José Saramago, Levantado do Chão


Foto de Paula Fonseca

Paisagem foi o que não faltou no passado sábado. Paisagem bela, bruta, selvagem e domesticada, de cortar a respiração. Paisagem anterior ao homem e com a marca que ele depois lhe deixou, sentado sobre as serras e os montes e deslizando ao longo dos rios e dos vales.

Mas estou-me a adiantar à história. Esta teve início quando em boa hora me inscrevi no 2º Ultra Trail de 100K da minha ainda recente encarnação desportiva, a instâncias de um bom amigo, o Luís Ricardo, natural do municipio de Portalegre. Desta feita para participar no I Ultra Trail da Serra de São Mamede, prova que nasceu da empreendedora iniciativa do Atletismo Clube de Portalegre.






Altimetria da Prova

Percurso da Prova


Conheci o Luís Ricardo no 2º Trail das Terras de Sicó, em 2011, e logo me cativou pela sua alegre expontaneidade, verbo escorreito e trato afável. Desde então cruzámo-nos em mais algumas provas,que nos permitiram alimentar uma amizade forjada na cumplicidade de um forte interesse partilhado e na sua natural simpatia. Como Alentajano hospitaleiro que é, convidou a minha família a partilhar o espaço da sua durante um fim de semana da Pascoa, e assim passámos um par de dias inolvidáveis, a usufruir de tudo o que de melhor o Alto Alentejo tem para oferecer. Pelo meio aproveitámos para fazer um excelente treino pela zona de onde o Luís é natural, e onde vai edificando o seu Refúgio.


Luís Ricardo - Foto de José Sousa
  
Na passada 6ª feira voltámos ao lar da acolhedora família Ricardo, agora para nos prepararmos para a aventura desportiva que se iria desenrolar. Tomado o jantar, dirigimo-nos para o Estádio, onde se encontrava o secretariado em que se levantavam os dorsais e onde iria ter início a prova, às 4 horas da madrugada. Já em casa, só tivémos tempo de preparar o material obrigatório (frontal, pilhas, reservatório com 1 litro de água, 1000Kcal sob a forma de géis e barras, apito e telemóvel) e enfiá-lo dentro da mochila de hidratação. Pouco depois das 22h já estava deitado e a dormir (não sou de ansiedades e há que dormir, que diabo!).

Acordámos cerca das 2h, tomámos o pequeno-almoço indispensável e fomos para o estádio. Tivémos a desdita de comprovar que já estava a chover e que a temperatura estava fresca (estariam uns 10 graus). Encarámos esse facto como um pequeno contratempo e o nosso ânimo não arrefeceu. Na verdade até ficámos mais descansados pois provavelmente não iríamos correr o risco de sobreaquecer com as inclementes elevadas temperaturas alentejanas.

No estádio - Foto de Vitorina Mourato

No estádio encontrámos os cerca de 200 participantes que iriam alinhar à partida e revimos com alegria muitos dos companheiros destas aventuras. Entre eles o companheiro Carlos Santos (Caló) do Run 4 Fun e o Eduardo Santos, de O Mundo da Corrida e meu treinador. A emoção era palpável, sentia-se a tensão na humidade do ar, cheirava a adrenalina antes do tiro de partida. Parafraseando uma personagem de um filme famoso: “I love the smell of adrenaline in the morning...”


Grupo da Frente - Foto de João Faustino

 Às 4h em ponto arrancámos para aquilo que adivinhávamos iria ser uma saga de proporções épicas. A noite estava escura (“e tempestuosa” :-)). Progredimos com o frontal aceso, num grupo que incluia o Luís Ricardo, o Cláudio Quelhas, o Guilherme Hora e moi meme. Avançávamos rápido para tentar evitar os habituais engarrafamentos quando atingissemos o troço mais técnico no single-track junto ao ribeiro. Aos 10 km passámos pelo primeiro PAC (posto de abastecimento e controle) nos Viveiros e aos 17 kms passámos pelo PAC2, em Alegrete, freguesia muito pitoreca, com um pequeno Castelo bem conservado. Estavamos com 1h33 de prova. Encontráva-me em 21º Lugar, mercê do forte ritmo imposto neste início de prova (5’30’’/km).

A caminho das Antenas

Aqui teve início a longa e progressiva ascenção para o PAC3 nas Antenas. Ao fim de 2 horas de prova resolvemos desligar o frontal pois o dia já começava a clarear e, de qualquer forma, no meio de todo aquele nevoeiro a luz do dito espalhava-se muito difusa , tornando o ar opaco. Por enquanto ainda fazíamos as subidas todas a correr, no entanto quando chegámos à última subida, perdemos todas as veleidades de o fazer pela sua brutal inclinação. Com esforço, lá conseguimos chegar ao PAC3, aos 30 kms, no ponto mais alto do percurso (cerca de 1000m), com 3h15 de prova e ainda em 21º lugar.

Eu sabia bem que, para as minhas capacidades, este ritmo era demasiado violento para uma prova 100 km, mas com o entusiasmo do início e a alegre companhia (o Luís contava estórias e episódios picarescos que muito nos divertiam) os kms foram passando rapidamente. 

Foi neste ponto que perdi o Luís. Segui atrás do Cláudio e começámos a descer para a Barragem da Apartadura, onde chegámos uma hora depois (aos 39,5 kms).

Barragem da Apartadura - Foto de Macedo

Daqui seguimos para a o PAC5 em Porto Espada onde chegámos, juntamente com o Vasco Marques, com 5h21 e 48 kms nas pernas. Mantinha-me em 20º lugar. O tempo continuava húmido e fresco, com chuva ocasional, mas nunca necessitei de recorrer ao corta-vento que trazia na mochila para qualquer eventualidade.


Bruma - Foto de João Faustino

A esta altura já sentia as pernas bem pesadas e interrogava-me como iria estar quando chegasse a Marvão, o ponto fulcral da nossa aventura. O tempo foi limpando à medida que nos aproximávamos de Marvão e pudemos apreciar o magnífico cenário, luxuriantemente arborizado, que se desenrolava diante de nossos olhos. Castanheiros, carvalhos, vinhas e olivais espalhavam-se pela paisagem.

Às 10h da manhã atravessámos o Rio Sever e pouco depois do km 55 encontrámos o Jorge Serrazina e o João Faustino. Duas semanas antes o Jorge tinha sido 9º nos 108 kms do OMD e na semana anterior o João tinha sido 2º nos 101 kms de Ronda. Atletas incansáveis estes, para quem provas de 100 kms são apenas aquecimentos para as grandes aventuras de 330 kms na montanha.

Subida para Marvão

 Contornámos a serra e iniciámos a tortuosa subida para o Castelo, que se divisava alcandorado no alto do maciço rochoso. Quando já julgávamos estar perto das muralhas e de um brave mas merecido repouso, eis que somos obrigados a inflectir para a direita e iniciar uma descida que me levou a questionar-me se não teria falhado alguma marcação, não fosse esta já a saída de Marvão. Mas não, o caminho era mesmo aquele. Desventurados de nós que tivémos então que iniciar uma nova subida, muito mais inclinada, a exigir tracção integral e muito fôlego.

Subida para Marvão - Foto de João Faustino

 Ao fim de um tempo interminável, entrei na porta do Castelo, onde nos esperava o João Carlos Correia do ACP (este homem, para além de incansável tem o dom da ubiquidade pois estava em todo o lado numa preocupação constante que tudo estivesse bem com os atletas). 

Às 11h05 (7h05 de prova) cheguei ao tão almejado PAC6, onde me reestabeleci com uma sopa quente, bananas, muitos gomos de laranja, coca-cola, etc. Os abastecimentos foram sempre excelentes, mas foi sobretudo a partir deste ponto que eu comecei a comer como um alarve, dado o dispêndio energético que já tinha sido feito para completar estes 60 kms iniciais. Curiosamente neste momento estava com um tempo e quilometragem idênticos aos que tinha feito no Oh Meu Deus, duas semanas antes (onde participei na prova de distância intermédia).

Vila Medieval de Marvão - Foto de autor não identificado

Neste ponto tinha ganho alguns lugares e estava agora em 14º. Dispensei a troca de roupa e saí das muralhas em direcção a Carreiras. A descida até Portagem foi bastante penosa pois foi feita por um estradão de empedrado irregular que, a cada impacto, me dava a sensação de  facas a espetarem-se nos meus pobres e muito massacrados pezinhos.

Calçada Medieval - Foto de João Faustino

Quando cheguei cá abaixo e passei a ponte sobre o Rio Sever deparei-me com dois companheiros perdidos, o Francisco Costa e o Rúben Pedro. Ao que parece as marcações tinham sido removidas por alguém. Andámos pela povoação desnorteados. Pedimos indicações à GNR, mas ninguém nos sabia orientar, até que passou um ciclista (da organização?) que nos voltou a colocar no rumo certo.

Os dois companheiros distanciaram-se pois eu já não conseguia manter um ritmo muito vivo. Penei até Carreiras, onde se encontrava o PAC7, aos 70 kms. Continuava em 15º mas tinha já 8h15 de prova e perguntava-me quando daria um estoiro monumental. Felizmente a minha mulher e filhos, juntamente com a mulher e filha do Luís Ricardo, encontravam-se neste posto para me receber e animar. O meu filho fez-me uma exuberante “guarda de honra” até ao abastecimento, que muito me animou. Confessei à minha mulher que já estava todo partido mas ela replicou que os que tinham passado antes não iam melhor.

Helena e Rita

Engoli um cubo demarmelada, hidratei-me e decidi que não era necessário reabastecer de água a mochila. Parti em direcção a Castelo de Vide. Subi uma calçada medieval com cerca de 3 kms. Na realidade o PAC8 não estava situado em Castelo de Vide mas sim no alto da Senhora da Penha, portanto quando comecei a ver Castelo de Vide do outro lado da encosta onde me encontrava, imaginei desconsoladamente que ainda teria que descer e subir para lá chegar. Mas não, aos 77 kms, com 9h20 de caminho, cheguei ao PAC8 onde reencontrei a minha família.

Alimentei-me e fui informado que o próximo PAC se encontrava a 14 kms. Na realidade este penúltimo troço teve cerca de 16 kms, o que, psicológicamente, foi algo difícil de gerir, pela distância inesperada, pois os abastecimentos são sentidos como uma espécie de oásis onde nos abrigamos da inclemência do caminho. Nesta altura da corrida estava tão massacrado que já ansiava pelas subidas, pois eram ocasiões em que me podia dar ao luxo de caminhar em lugar de correr, dado estar certo que neste ponto do campeonato todos os outros atletas faríam o mesmo. Nesta altura fui ultrapassado pelo Guilherme Hora, que estava a fazer uma corrida muito inteligente, detrás para a frente (nestas provas longas a estratégia é essencial para gerir inteligentemente o esforço).


PAC9 - Foto de Daniel Casado

Ao 93º km lá cheguei finalmente ao PAC9 no Convento da Provença, com 11h27 de prova. Os atletas que lá estavam pareciam completamente demolidos, átomo por átomo. O camarada que seguia em 6º lugar tinha acabado por desistir neste ponto. Eu tinha agora 13 companheiros à minha frente. Mais uma vez a minha família se encontrava lá, indefectível à minha espera. Retrospectivamente, estou certo que a sua presença neste três últimos PACs foi essencial para que eu não esmorecesse.

Família - Foto de Daniel Casado

Daqui para a frente os restantes 12 kms foram integralmente geridos com o coração porque as pernas gritavam permanentemente por misericórdia, que tivesse dó e parasse. Os ultimos 5 kms foram já feitos com Portalegre à vista, o que constituiu uma espécie de tormento de Tântalo, ver ali a meta tão perto e ainda não lhe conseguir chegar...

Estádio - Foto de João Faustino

Por fim, entrei no estádio, ao som da música dos Queen: “We are the champions my friend... ”

Uma última volta final à pista e eis que cruzo a meta, fisicamente completamente destroçado mas com uma enorme satisfação anímica. As longas hora de treino, e o cumprimento dos planos que o Eduardo Santos me vai elaborando regularmente, têm dado frutos.

Fui 11º da classificação geral e 4º do meu escalão M40, com 105 kms percorridos e 3400m D+ (desnível positivo) em 13h03.


 Há quem diga que a dor é temporária mas a glória é para sempre. Respondo eu que qualquer um que corra durante 13 horas seguidas confirmará que esse “temporário” assemelha-se muito a uma infinita eternidade.


Família no Pódio - Foto de Helena Bárrios
 
O vencedor da prova foi o Luís Mota, com o extraordinário tempo de 10h39!

Cumprimentei o Guilherme Hora e o Cláudio Quelhas, que já tinham chegado, e esperei pela minha família que chegou pouco depois. Fui para a massagem relaxante, tomei um banho que me soube maravilhas e alimentei-me.

Depois do Luís chegar (muitos parabéns para ele, que completou galhardamente a sua primeira ultra de 100K!) ainda fomos jantar o excelente repasto que a organização nos tinha preparado. Souberam-me especialmente bem as 3 imperiais geladas que ingeri. Depois voltámos para casa do Luís e para o descanso dos guerreiros.

O Alentejo tem fama de ser plano mas a região de Portalegre não o é seguramente! Esta foi uma prova bem difícil, pelas subidas e descidas acentuadas e pela dureza do piso. Mas é assim mesmo que se querem as provas de trail e esta merece indubitavelmente os 3 pontos que lhe foram atribuídos. Para além disso, a beleza da paisagem é inexcedível e a organização esteve impecável. A longa e meticulosa preparação, empreendida pelo Atletismo Clube de Portalegre, concretizou-se num evento sem falhas. São de destacar a quantidade e qualidade da informação que foi sendo colocada na site da organização ao longo dos meses que antecederam a prova, os vários treinos prévios que cobriram todo o percurso, a abundância dos abastecimentos e a simpatia dos voluntários nos PACs, etc, etc.

No domingo ainda aproveitámos a hospitalidade da família Ricardo para efectuarmos um belíssimo passeio a Marvão, Portagem e Castelo de Vide, com roteiro gastronómico pelo meio.


Peço que me desculpem a extensão enfadonha desta crónica mas como diz  Saramago:

“Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.”
- José Saramago, Levantado do Chão

Comentários

  1. Antes do relato fica a tua grande aventura e o excelente comportamento nesta prova bem difícil cuja gestão do esforço foi impecável, as quebras e o desânimo momentâneo foi comum a todos, mas grande vitória foi concluir com o sentimento gratificante de se atingir mais um grande feito. O têxto está extraordinário e revi nele também a minha odisseia que levou mais 6h. a finalizar, quer os mais rápidos quer os mais lentos todos sofremos por igual confome as nossas capacidades individuais, daí eu saber valorizar também as vitórias dos meus companheiros de aventura. Parabéns caro amigo e desejo boa recuperação, fundamentalmente porque prevejo que a Freita não te vai escapar, se assim for ver-nos-emos por lá. Abraço.

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  2. Caro Luís,
    Muitos Parabéns pelo relato... e pela excelente prova!
    Revi-me em muitos dos momentos (não é difícil).
    Até ao próximo empeno...
    abraço

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  3. Obrigado a ambos pelos simpáticos comentários!

    Parabéns também para ambos, por terem concluído galhardamente esta aventura.

    Sem dúvida que a grande vitória foi concluir e julgo que os que tentaram mas não terminaram por variadas razões, também estão de parabéns por terem a coragem de arriscar uma empresa destas.

    Gostaria de ir mas este ano não vou poder comparecer na Freita, que é uma das minhas provas favoritas.
    Devemo-nos ver no UTNLO.
    Abraço

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  4. Caro Amigo Luís Ferreira,
    ...sublinho mais uma vez que o Trail para mim vai muito para alem do correr, progredir no terreno, desfrutar, contemplar e preservar a natureza, pois entendo que é também uma vivência social marcante, partilhada pela amizade, numa aprendizagem constante...
    ...como já te o disse, gosta-mos de receber bons Amigos, neste nosso habitat natural, partilhando a nossa humildade conjuntamente com o pouco que possuímos...
    ...assim, tivemos e teremos sempre muito gosto em ter entre nós a vossa agradável companhia, num qualquer fim de semana do ano, para que possamos percorrer os trilhos que cercam o meu Refugio, em pleno Parque Natural da Serra de São Mamede, numa caminhada familiar, numa contemplação gastronómica Alentejana acompanhada por muita conversa e sempre que pretendas participar nas próximas edições da UTSM...
    Um forte abraço desta familia de Amigos Alentejanos, lfmricardo

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