Oh Meu Deus Trail Run (50 km)
Summary
A minha aventura mais recente teve lugar na nossa Montanha Mágica, a Serra da Estrela, onde participei empenhadamente no Oh Meu Deus Trail Run, na dis
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«Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou para conhecer o gelo.»
Assim tem início uma das mais conhecidas obras primas da literatura, Cem anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez. Tal como Aureliano Buendía gravou na sua memória uma imagem indelével da essência mágica da vida, daqui por muitos anos, perante a iminência do esquecimento final, também eu me hei-de recordar desses dias distantes em que calcorreei serras e montes, atravessei ribeiros e vales, transido pelo puro prazer de encher o coração de sangue e os pulmões de ar.
A minha aventura mais recente teve lugar na nossa Montanha Mágica, a Serra da Estrela, onde participei empenhadamente no Oh Meu Deus Trail Run, na distância de 50 kms. Esta prova está na sua 2ª edição, e este ano foi composta por 3 etapas, de uma série que teve início a 14 de Janeiro em Proença a Nova, continuou a 10 de Março em Vila do Rei e acabou a 5 de Maio em Manteigas. Nesta última, tiveram lugar 3 provas distíntas, uma, mais curta, de 20 kms, outra de distância intermédia com 50 kms e a prova rainha com 104 kms.
Altimetria |
Com reserva para 4 (a família inteira, como já é habitual) marcada no Hotel Vale do Zêzere (que excedeu as minhas expectativas), partimos de Lisboa às 19h20 de 6ª feira dia 4. Ainda chegámos a tempo do briefing no Auditório Municipal, às 22h20. Encontrei logo algumas das caras conhecidas, o Sousa, o Serrazina, a Célia, entre outros. Dados os precalços com que decorreu a prova do ano passado (incluindo atletas que se perderam e esperaram horas para serem localizados), este ano a organização mostrava-se muito cautelosa, avisando constantemente para o perigo de determinada subida, ou troço mais complicados, alertando para o frio e vento previstos.
Hotel Vale do Zêzere |
Ainda não eram 5h30 e eu já estava acordado, pronto para correr. Vesti a roupa, desci para tomar um pequeno-almoço rápido e frugal e dirigi-me para o local de partida. Lá, reencontrei o Manuel Azevedo, o Gustavo Santos e vários outros companheiros destas aventuras. A partida das duas corridas seria dada em simultâneo, o que na minha opinião foi muito positivo, pois assim os 74 participantes dos 104 kms seriam acompanhados pelos 44 dos 50 kms e todos estaríamos menos sós ao longo do percurso.
Partida |
Às 7h em ponto foi dado o tiro de partida e arrancámos pela vila acima, bem protegidos pelos impermeáveis. Ao fim de 3 kms removi o impermeável, apesar da chuva miudinha que caia esporadicamente. Saídos da povoação, entramos num misto de estradões e single-tracks com alguma tecnicidade, a caminho da Pousada de S. Lourenço. Ainda atravessámos o Mondego por duas vezes antes de chegar à Pousada.
Quanto a mim, a prova dividiu-se em 3 troços. Teve um 1º troço com uma subida à Pousada e regresso até ao campo de futebol de Manteigas, onde estava o 1º abastecimento (apenas liquidos), aos 18,5 kms. Depois um 2º troço que subiu até à Torre, onde estava o 2º abastecimento (líquidos e sólidos) aos 36 kms e 1991 m de altitude. E por fim o 3º troço, que nos levou de volta até Manteigas, aos 730 m de altitude.
1º troço |
Fui o 5º atleta a passar pelo 1º abastecimento e nessa altura constatei, com alguma surpresa, que provavelmente me encontrava em 1º lugar na prova dos 50 kms (nos postos não havia identificação de atletas por provas). Isso deu-me animo e arranquei rápido para iniciar o 2º troço. Este começou com um estradão, que subia pela encosta norte do Zêzere. Nesta altura corria isolado. Aos 20kms não vi uma fita que assinalava uma descida. O Rui Seixo, que vinha um pouco atrás de mim, também não viu. Penso que deveriam ter marcado melhor essa descida, mas isto poderá ser uma opinião parcial, feita em causa própria. Seja como for, julgo que as marcações, feitas com fita cor da laranja fluorescente, eram bem visíveis e frequentes, mas pecavam por não obedecer a um código claro, como é habitual em provas de trail (por exemplo, quando há saídas de estradões deveria existir uma fita ao comprido no chão do estradão, para indicar que essa direção termina ali).
Este engano resultou em 2 kms a mais, e várias paragens e indecisões, até reencontrarmos o caminho, na descida para o rio. Aí reencontrámos vários dos atletas que já tinhamos ultrapassado anteriormente e forçámo-nos a estugar o passo a fim de os ultrapassar novamente. Aqui permito-me um parentesis para sublinhar o alento de que usufrui na companhia do Rui Seixo, que conheci durante a prova, e que foi para mim uma ajuda preciosa. Competimos em provas distíntas, ele nos 104 kms e eu nos 50 kms, mas até Manteigas fizémos a maior parte do percurso juntos (grande atleta, ele, que acabaria por terminar em 6º lugar a prova dos 104 kms).
Zêzere |
Atravessámos o rio sobre uma ponte de pedra (ou cimento) e subimos paralelos ao Zêzere, ao longo do vale, com os pés quase permanentemente enfiados dentro de água. Este rio nasce a cerca de 1900 m de altitude, junto ao Cântaro Magro, onde define um vale glaciar.
Vale do Zêzere |
Nave de Santo António |
Quando chegámos ao início do vale (lindíssimo), subimos até à Nave de S. António por um single-track duríssimo, onde eu só conseguia pensar que no País Basco irei ter que penar com 2 dias inteiros de subidas com um grau de dificuldade comparável...
Percurso |
Chegados à rotunda, cá em cima na estrada, perto do Centro de Limpeza de Neve, entramos no alcatrão em direção à Torre. Pouco depois inflectimos à esquerda e entrámos noutro single-track diabólico, o Caminho do Major, com muito calhau e alguma neve escorregadia. Aqui já comecei a sentir os efeitos do ar mais rarefeito e progredi com bastante dificuldade. Este foi, aliás, o bocado que me custou mais a percorrer. Ao fim de um tempo que me pareceu uma eternidade, finalmente saímos do estradão e voltámos ao alcatrão.
A caminho da Torre |
Alcançámos o abastecimento da Torre, no meio do frio (estariam uns zero graus), do nevoeiro e da neve, e dei comigo a sentir-me mais esfomeado do que um urso depois da hibernação invernal. Era o 7º atleta a passar por este controlo, mas não fazia ideia de quantos desses companheiros estariam a fazer a prova dos 50 kms.
Aproveitei para reestabelecer as forças, com uma canja de galinha quentinha, chocolates, amendoins, marmelada, coca-cola, etc. Nem sei como é que o meu estomago não se virou do avesso com esta misturada. O que é certo é que a pausa e os alimentos me deram um novo alento e, juntamente com o Rui, consegui descer, pela estrada, novamente até à rotunda, a um ritmo de 4’30’’/km.
Da rotunda direcionaram-nos para os Poios Brancos, no cume da Serra, por um trajecto virgem, de progressão difícil, aos saltinhos por cima de inúmeros calhaus, até que tiveram início os estradões.
De regresso para Manteigas |
Após um percurso que pareceu interminável (estávamos à espera de fazer 51 kms até à meta mas os nossos Garmins marcaram 60 kms e picos) lá iniciámos a descida para Manteigas. Ao subir pelo meio da vila, via o fim a aproximar-se. Alguns minutos depois, foi com uma grande surpresa (e alegria) que descobri ter sido o primeiro da prova dos 50kms a cruzar a meta.
Fui 1º Classificado da Geral (na prova de distância intermédia, que estava prevista ter 51km mas acabou por ter 58km para a generalidade dos atletas). O meu Garmin marcou 60,3 km com 2575m D+ em 7:00:02. O tempo oficial foi de 07:01:07.
A verdade é que os grandes tubarões estiveram na prova de 104kms :-) Apesar de tudo, foi para mim uma prova bem dura e um 1º lugar sempre é um 1º lugar :-)
O único cheirinho que tinha tido anteriormente de um pódio, tinha sido no K42 do Axtrail, em Outubro de 2011, onde fiquei em 3º lugar do escalão Vet I.
Fiquei para a massagem revigorante, para o almoço retemperador, para o são e alegre convívio e, “last but not least”, para o pódio. O Rui seguiu para completar os 50 kms que ainda lhe restavam fazer na prova rainha (que acabou por ter cerca de 108 kms).
Enquanto esperava, pude ver chegar vários atletas dos 104 kms, alguns deles muito desagradados com o facto de se verem obrigados a completar mais kms do que o esperado. Compreendo bem o seu ponto de vista, pois se para mim os kms a mais foram feitos durante o dia, com condições atmosféricas e de visibilidade razoáveis, para eles esses kms iriram ser feitos durante a noite, em condições muito piores. Pior ainda foi para aqueles que foram desclassificados no ponto de controle da Torre, por ultrapassarem o tempo limite estipulado para esse ponto, apesar de terem sido obrigados a fazer mais kms do que era suposto.
À posteriori, de acordo com o site da organização, «a semana que antecedeu a prova foi de muita chuva, frio e neve. Adivinhava-se uma dia de prova difícil para todos. No próprio dia de prova, após a partida, a organização ainda estava limitada nos acessos ao ponto mais alto. Ainda tinha de alterar o percurso. Assim o fez com um acréscimo de quilómetros.»
«O dia 5 de Maio e a terceira etapa de 2012 ficam marcados um tempo que teve de tudo: Sol e temperaturas quentes, chuva e vento, neve, nevoeiro e temperaturas negativas. Para ajudar os mais lentos, a lua cheia( uma das mais brilhantes dos últimos anos, apareceu para iluminar os trilhos mais sinuosos.»
Enfim, a prova é muito bonita, eu gostei muito de a fazer, e penso voltar para fazer a prova maior (a próxima edição promete ter 140 kms), mas a organização necessita claramente melhorar alguns pontos. No entanto, ao que parece, este ano já esteve bem melhor do que no ano passado e não me consta que tivesse ocorrido nenhum drama na edição deste ano.
Organizar um prova desta envergadura, num local extremamente imprevísivel (e perigoso) como a Serra da Estrela, deve ser um empreendimento muito complexo e deve exigir uma atenção minuciosa a muitos detalhes. Acho salutar que exista uma equipa que se abalance a enfrentar esse desafio.
Quanto ao tempo, e apesar de todos os avisos da organização, não sofri com frio, apesar de pouco agasalhado. Durante o dia julgo que tivemos sorte pois, apesar do tempo fresco, apenas chuviscou ocasionalmente e o vento foi brando. Não sei ao certo quais foram as condições meteorológicas durante a noite, mas terão sido certamente bem mais duras, e debaixo da escuridão.
Tudo o que sei é que a prova rainha foi ganha pelo Pedro Marques, de O Mundo da Corrida, com um fantástico tempo de 11h59. O conjunto das 3 séries da prova longa foi ganho pelo Luís Mota, do ADR Águas Belas.
Depois de partilhar a minha alegria com a minha mulher e filhos, companheiros indefectiveís das minhas aventuras, saímos para visitar o vale, que é lindíssimo (é um vale em forma de U, típico dos glaciares, com inúmeras cascatas, jorrando água, e casinhas de granito, montadas como legos). Subimos até à Torre, onde os miúdos se deliciaram com a neve, e, apesar de não estarem suficientemente agasalhados, não queriam arredar pé.
À noite jantámos, no restaurante do Hotel, uma explêndida Chanfana à moda da Serra e uma dose de Feijocas. No dia seguinte, ainda tivémos a oportunidade de visitar o belíssimo Vale do Rossim, com a sua barragem e parque de campismo, e ainda a aldeia mais alta de Portugal, o Sabugueiro (1050 m), onde comprámos um apetitoso queijo da Serra (que, nos últimos dias, tem estado a dar cabo da minha dieta equilibrada).
Acabo esta crónica como comecei:
«Ao ser destapado pelo gigante, o cofre deixou escapar um hálito glacial. Dentro havia apenas um enorme bloco transparente, com infinitas agulhas internas nas quais se despedaçava em estrelas de cores a claridade do crepúsculo. Desconcertado, sabendo que os meninos esperavam uma explicação imediata, José Arcadio Buendía atreveu-se a murmurar:
— É o maior diamante do mundo.
— Não — corrigiu o cigano. — É gelo.»
Diamante ou gelo, a magia está ao alcance da mão (ou do pé)...
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