Ultra Trail Atlas Toubkal - UTAT 2016 - A prova
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João Faustino, Marisa Marques, António Costa, Francisco Martins, Paulo "El comandante" Pires, Ana Paula Guedes, Miguel Serradas Duarte, Marian Leite Braga, João Mota, Rui Pedro Julião, Rui Pires, Luis Afonso, Nuno Faria, José Santos, Luis Matos Ferreira (na foto falta o Flávio Francisco).
Próximo Post: Marrocos, a experiência cultural.
Os 15 magníficos |
João Faustino, Marisa Marques, António Costa, Francisco Martins, Paulo "El comandante" Pires, Ana Paula Guedes, Miguel Serradas Duarte, Marian Leite Braga, João Mota, Rui Pedro Julião, Rui Pires, Luis Afonso, Nuno Faria, José Santos, Luis Matos Ferreira (na foto falta o Flávio Francisco).
"The chain of the High Atlas is the highest of Morocco: it
culminates at 4167 m with the Toubkal Jebel and stands as a long of more than
700 km border separating the oceanic and subtropical climate, warm and rather
humid, semi climate -désertique and continental.
Today, the High Atlas itself as a land of Berber culture and
traditions remain alive. Far contemporary Road, one discovers the azibs (dry
stone shepherd huts) and small houses douars that seem totally out of time,
thrown here and there in the vast desert of altitude.
Here, hospitality is a founding principle. The Berbers
welcome you to their improbable villages, built on the mountain side or the
bottom of a lush valley. We live in autarky and self-sufficiency, to nothing,
in a simplicity that invites reflection on our own lifestyle."
"Vou passar
a noite a Sintra por não poder passá-la em Lisboa,
Mas, quando
chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta
inquietação sem propósito, sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre,
sempre,
Esta angústia
excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de
Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida..."
- Álvaro de
Campos
“A felicidade é
um estado durável de plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico, em
que o sofrimento e a inquietude são transformados em emoções ou sentimentos que
vão desde o contentamento até a alegria intensa ou júbilo. A felicidade tem,
ainda, o significado de bem-estar espiritual ou paz interior.”
Quem acredita que
aquilo que os seres humanos procuram é a felicidade labora num equívoco. A
felicidade não tem valor evolutivo.
O que todos nós
procuramos é a transcendência. Aquilo que procuramos transcender é a nossa
finitude, a nossa fragilidade, o nosso medo profundo.
Vivemos
aterrados. Perdidos num universo que não compreendemos, no qual não encontramos
lugar nem propósito para as nossas curtas existências.
É o terror do
vazio que nos empurra para a frente. Não avançamos à procura da felicidade.
Fugimos do vácuo.
O que nos move
não é a procura do positivo, mas sim a fuga do negativo.
Esta é uma
perspetiva que lança luz sobre as ações humanas.
Porque corro?
Porque razão
participo em provas que demoram mais de 24 horas e que implicam uma enorme dose
de sofrimento físico e psíquico? Ninguém me força a fazer isto. Não tenho
qualquer retorno material, pelo contrário, sou eu quem tem que financiar estas
minhas aventuras. Sou eu quem tem que passar horas intermináveis a treinar na
Serra, faça chuva ou faça sol
Posso elencar
inúmeras razões que justifiquem esta minha paixão:
Porque me faz
bem.
Porque me dá a
conhecer locais maravilhosos.
Porque a corrida
em trilhos na natureza é uma atividade eminentemente social, que expandiu
enormemente a minha rede de amizades.
Porque gosto da
competição.
Pelo sentimento
de superação.
Porque adoro
todos os sentidos que desperta em mim, tudo aquilo que me faz sentir.
Adoro sentir o
vento no rosto e o coração a pulsar.
E muitas outras
razões válidas e verdadeiras.
Mas na verdade a
razão principal e a mais verdadeira de todas é porque me permite, mesmo que
seja apenas por breves instantes, escapar da condição humana.
Recentemente reli
um livro fascinante, “O filósofo e o lobo”, onde, à luz do que aprendeu com a
convivência com um lobo, o autor, Mark Rowlands, se questiona, entre outras
coisas, acerca da natureza da felicidade.
Segundo ele, o
homo sapiens não vive de forma absoluta o momento presente, mas antes imerso
num contínuo que nos mergulha no passado e nos projeta no futuro. O lobo é mais
um ser do presente, o qual vive de forma completa e inteira.
Essa imersão no
tempo leva-nos muitas vezes a esquecer o valor do processo e focamo-nos apenas
no objetivo, que está sempre diferido. No próprio instante em que o cumprimos,
esgota-se.
O lobo vive o
processo. E os processos mais vitais são os mais viscerais, aqueles que
envolvem a maior dose de êxtase, ligada inextricavelmente com extremos de
agonia e desconforto. Por exemplo, quando corremos e damos o nosso máximo,
durante várias horas de esforço ininterrupto e esgotante, o que é que sentimos?
Sobretudo desconforto, mas também uma enorme exaltação. E sentimos isso tudo em
simultâneo. São duas faces da mesma moeda que não são separáveis,
experienciadas em uníssono. O que é que fica depois de acabarmos? O principal
não é com certeza a marca atingida, mas antes a memória indelével e física do
processo de correr.
Às 6h10 de uma
manhã fria, no planalto de Oukaimeden, a 2.500 metros de altitude, na
cordilheira do Atlas Marroquino, soou a contagem descrescente: 5, 4, 3, 2, 1,
go!
Lançamo-nos em
uníssono para o ar frio da madrugada, correndo rápido para aquecer. O primeiro
quilómetro é plano, dá para engrenar a quinta e disparar para frente. Esperam-nos
105 km com 6.500 m de desnível positivo, em terreno muito técnico. As montanhas
são inclinadas, pedregosas, secas e brutas. Praticamente não há vegetação, à
exceção de uns arbustos espinhosos que apenas as cabras conseguem mastigar.
Subimos às
escuras, iluminados pela luz do frontal. Assim que o terreno empina começamos a caminhar,
que trotar por ali acima gasta demasiada energia. Vou com o Nuno Faria e o Rui Pires. São
cerca de 11 km até ao primeiro posto de controlo (PC1), lá no alto aos 3.000 m.
Não haverá abastecimento à nossa espera.
Uma das
características principais desta prova, é que esta sim, é de facto em
semi-autonomia, ao contrário daquelas a que estamos habituados no continente
europeu. Fomos informados pela organização de que existem apenas 3
abastecimentos. Da extensa lista de material obrigatório consta a necessidade
de carregar 3.000 Kcal connosco. Cada bolsinho da minha mochila alberga várias
barritas energéticas.
Chegando ao alto
deparamos com o espetáculo magnífico do nascer do sol. Há lá coisa mais bonita
do que um esplendoroso nascer do sol? Sobretudo neste ambiente marciano que
reverbera numa vasta paleta dos mais variados tons ocres.
Agora vamos
descer em direção ao PC2 que fica no km 20 seguido do PC3 ao km 30, cerca de
1.500 m mais abaixo do ponto onde estamos. A descida é rápida, por um estradão
largo. Entusiasmo-me e acelero. Iremos passar por várias aldeias berberes, que
mal se divisam no meio da paisagem ocre. As casas são feitas do material
circundante, um barro laranja ocre. Estão perfeitamente camufladas,
confundindo-se com a paisagem. O único elemento moderno que as distingue são as
antenas parabólicas nos telhados planos. Pode não existir água corrente, mas a
televisão (e a eletricidade) não falta.
As aldeias estão
plantadas junto a leitos de ribeiros. O único verde que se divisa é junto a
estas aldeias, nas poucas árvores que medram junto aos ribeiros e na
agricultura de socalcos.
Pouco antes do
PC2 cruzo-me com o Paulo Pires, com o José Santos e com a Paula que
participavam na etapa dos 42 km do Challenge. Saúdam-me entusiasticamente.
Chegado ao PC2,
sou controlado em 32º lugar, número idêntico ao do meu dorsal. Se fosse supersticioso diria que é um bom augúrio. Entro, ingiro uns frutos seco, abasteço de água e
saio novamente.
A parte seguinte
do percurso é monótona. Apanhamos um troço interminável de estradão, sempre à
mesma cota. O PC3 nunca mais chega. Vou junto com o Rui Pedro Julião. Demoro
cerca de 5 horas a fazer estes 30 km iniciais. Está muito calor. Destilo. O
abastecimento tem figos, damascos, amendoins, bananas e pouco mais. Não consigo
ingerir nada de jeito. O meu estomago está impermeabilizado pelo calor e pela
água que o tenho forçado a aceitar. Tampouco consigo deglutir as barras
energéticas que trago comigo. Sabem-me a serradura. O saco estomacal está
completamente vulcanizado por este ambiente telúrico.
Os próximos 30
km, até ao abastecimento de sólidos, vão doer. As fibras do meu corpo guardam a
memória do brutal calvário que passei um ano antes quando cumpri os 170 km do UTMB como se fossem uma promessa que se tem que cumprir custe o que custar.
O nosso corpo é inteligência
incorporada. Guarda a memória do que fomos e do que sentimos. Desde esse
fatídico fim-de-semana em Agosto de 2015 que nunca mais consegui correr sem
esforço. Um ano inteiro a penar em cada treino. O corpo a recordar-me as 39
horas de agonia. A segunda noite interminável. Os últimos 34 kms feitos de uma
lentidão agoniante. A passo. Subidas paquidérmicas. Descidas permitidas de
costas. Quadricípites destroçados. Pés em carne viva. Rins em pre-falência.
Tenho medo, medo
de ser forçado a desistir. DNF na tabela final. Did Not Finish. Pensamentos de derrota martelam-me o
cérebro. Seria tão mais simples abandonar. Confirmaria que já não sirvo para
isto. Que estou acabado. Que tenho que deixar as Ultras.
Agora é sempre a
subir. Avanço lento como um caracol. As pernas doem-me. Os braços doem-me de
tanto puxar pelos bastões. Os ombros doem-me. Sinto-me agoniado do calor e da
altitude. Por diversas vezes estou prestes a vomitar. Mas não há carga para
alijar.
Levo 2,5 l de
água nos reservatórios e o precioso líquido vai-se escoando rapidamente. Entro
num planalto riscado por um ribeiro largo. A água está prestes a acabar. Tenho
que abastecer no rio. Os comprimidos purificadores são obrigatórios, mas eu não
quero saber. Que se lixe. Demoram 30 minutos a atuar de qualquer forma. Avanço
determinado em direção ao PC4, onde sei que encontrarei água para reabastecer.
Assim que lá chego perguntam-me se estou bem. Digo que sim, mas que me deem
água que depois falaremos. Bebo mais sofregamente do que um camelo de três
bossas.
Repouso um pouco.
São agora 15h35. Estou em prova há cerca de 9h30. Avalio temeroso os 600 metros
de desnível que me separam do próximo cume, a 3 km de distância e 3.000 m de
altitude. Não vai ser aqui que vou parar. Vou ter ainda que ultrapassar mais
este obstáculo.
Não sei de que
subsiste o corpo. Provavelmente de si próprio. O que é certo é que vou vencendo
a altitude.
Chegado lá acima
tenho uns 9 km para descer. Troto o melhor que posso, por entre os rebanhos de
cabras que fogem espavoridos à nossa aproximação. Tenho que chegar ao
abastecimento de sólidos. Tenho que me forçar a ingerir alguma fonte de
energia. Tenho, tenho, tenho!
Agora parece um
carrocel. Tanto desce como volta a subir. Não sei o que me custa mais. Tudo me
custa. Até os pontapés nas pedras são bem-vindos pois a dor aguda, lancinante,
faz-me esquecer o espasmo contínuo dos músculos e articulações.
Às 18h15 chego
finalmente ao abastecimento. Encontro o Rui Pedro e o Kiko. O Kiko parece ter
uma perna bastante maltratada.
O abastecimento é
um oásis! Muito fraquinho em alimentos, uma sopa muito aguada, com réstias de
massa fininha, uns triângulos de queixo e pouco mais. Tem no entanto o meu
salva-vidas. Umas enormes batatas cozidas, com casca e tudo. A batata salvou-me
a prova. Levo o meu tempo a ingeri-la inteira, com calma.
Agora vai começar
a anoitecer. Vou sair com os companheiros. A presença deles trouxe-me um novo
ânimo. Visto roupa quente que lá em cima vai fazer frio.
Saímos. Sinto-me
novo. Parece que iniciei agora a prova. As dores foram-se. O espírito
renovou-se (o voltaren também ajudou).
Vamos ter que
subir até ao PC7, novamente acima dos 3.000 m. Despois desceremos ao PC8 e
finalmente iniciaremos a subida para o nosso zénite.
Às 20h estou no
PC8, juntamente com o Rui Pedro e o Kiko. Já é de noite. Servem-nos chá de
menta, afogado em açúcar. Sabe-me pela vida.
Tem aqui início a
subida para o cume do nosso Evereste. Estamos a 2.866 m e teremos que subir até
aos 3.670 m em cerca de 4 km. Vai ser um desafio a esta altitude. Há que
começar. Subo cheio de força. Nem pareço a mesma pessoa que percorreu
penosamente os primeiros 50 kms. Vou ultrapassando atletas. Passo pelo PC9
quase sem parar, já sinto o cheiro ao ponto mais alto.
No topo não se
encontra ninguém. Apenas as marcas refletoras que nos indicam que é chegada a
altura de iniciar a descida. Cerca de um km depois encontro a tenda do PC10 (km
72). Paro apenas o tempo de trocar uma palavras com os voluntários (dizem-me
que estão 3ºC neste local) e saio disparado a fim de não arrefecer. Mais um km
e têm início os famosos 2 kms verticais, abruptos de inclinados, de descida
quase contínua.
Tinham-me avisado
que que descer sem cair uma meia-dúzia de vezes era uma missão impossível e é
um facto que confirmo. Para mais desço rápido. Vou fazendo uma espécie de ski
nas pedras soltas, deslizando de lado onde possível. Seja como for avanço
depressa apesar da dificuldade do terreno. A progressão exige uma enorme
concentração a fim de evitar partir a cabeça contra os calhaus.
É com um grande
alívio que finalmente atinjo um planalto, a cerca de 1950 m. Permite-me soltar
as pernas por alguns momentos.
E pronto, mais
uma pequena descida e já avisto ao longe as luzes de Imlil, km 84 da prova,
1.600 m. Imlil é uma vila turística, ponto de base das expedições ao Atlas
Toubkal, o 2º ponto mais alto de África, com os seus 4.200m de Altitude.
O abastecimento e
base de vida fica num hotel.com alguma dificuldade consigo localizar o hotel, onde
encontro um grupo de voluntárias extremamente simpáticas. Estou no PC12 e são
agora 01h45 da madrugada. Quase 20h de prova.
Como um sopa meio
aguada e um pratinho de macarrão. Vai ter que servir até ao fim da prova que o
meu estomago não dá para mais.
Entretanto entra
na sala o João Faustino, que tinha estado a dormir uma sesta. Decidimos sair
juntos.
Já só falta o
troço final. Estimamos demorar umas 4h30.
A saída de Imlil
é seguramente o troço mais feio da prova. Até parece de propósito. Fazem-nos
passar por aquilo que parece uma lixeira. Enfim, fraca escolha, mas depressa a
deixamos para trás.
Nas subidas vou
bastonando com vigor. Teremos que subir novamente aos 2.000 m e depois descer
para os 1.750. Aqui encontramos novo PC, o 13º. Está fresco, portanto bebemos
uma cola e avançamos novamente. Faltam as duas subidas finais. Até aos 2.200 m
e depois até aos 2.700 m. Avançamos sem parar. Quanto mais depressa chegarmos
mais depressa deixaremos de sentir a dor. Os derradeiros 500 m custam
eternidades. Está escuro como breu e portanto não temos noção onde nos
encontramos.
Finalmente o
terreno nos parece conhecido. Deverá ser o troço final de pedra solta mesmo
antes de chegar ao pórtico feito de duas bandeiras marroquinas, sobranceiro ao
planalto onde se encontra o acampamento.
São quase seis
horas da manhã e estamos prestes a chegar. A alegria de avistar Oukaimeden
afoga todo o sofrimento. Resta descer um par de quilómetros. Palmilhamo-los
felizes por enfim chegar.
Às 6h17 juntos cruzamos
finalmente a meta.
O que se me tinha
afigurado impossível está completado. Cumpriu-se mais uma vez.
Vou sair daqui
revigorado, tendo tirado a desforra da desventura nos Alpes.
Estas corridas não
são a vida mas confundem-se com ela. Como se distingue o que é real daquilo que
está apenas na nossa imaginação? Existe de facto mais alguma coisa para além da
nossa imaginação? Ou faz sequer sentido a questão?
O ser humano
gosta de classificar o mundo, colocar etiquetas e organizar arrumadinho em
caixas. Mas o mundo continua a ser mais fluido e maleável do que os nossos contentores.
Nota: créditos fotograficos devidos a vários companheiros. Menção especial para as fantásticas fotos do Rui Pires.
Próximo Post: Marrocos, a experiência cultural.
Que valente prova fizeste, Luís. Parabéns!
ResponderEliminarUfaaa!! "...juntos cruzamos finalmente a meta."
ResponderEliminarBela aventura Luis e excelente relato.
Será que essa segunda parte foi o "segundo folego" (ando para encontrar alguém que lhe tenha acontecido e me conte ao vivo. tenho muita curiosidade nisso)
Espetacular, mais uma vez. Parabéns!
ResponderEliminarMuito bom, parabéns!
ResponderEliminarExcelente relato de uma odisseia admirável! Também gostei muito da "introdução". Os lobos...tal como os cães e esses vivem bem perto de nós, com tanto para nós ensinarem...
ResponderEliminarBelo relato, Luis, como sempre. Parabéns pela grande prova e pelo fim do "fantasma" da UTMB. Runabraço
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