UTAX - Ultra Trail Aldeias do Xisto - 2014

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Esta crónica esteve quase para se chamar “És tu e o tralho!” mas como esse título não reflete o verdadeiro espírito do AXtrail preferi deixar de lado o trocadilho fácil e escrever algo um pouco mais sério.




Aldeias do Xisto



Na 6ª feira, dia 17/10/2014, saí de casa, levando a família, por volta das 18h15m. A viagem de 186 km até Castanheira de Pêra estava prevista demorar cerca de 1h45m e assim foi, sem qualquer incidente digno de registo. Fomos até ao secretariado, na praça da Notabilidade, levantar o Dorsal nº 52.

A Go-Outdoor, entidade organizadora do evento, presenteou-nos com uma interessante surpresa: uma pequena árvore das espécies autóctones para plantarmos em local à nossa escolha.

Depois aguardámos que a simpática família Ricardo, agradabilíssima companhia de diversas destas aventuras, viesse ter connosco para partilharmos companhia num jantar em restaurante local. Jantámos a horas um pouco tardias, um bitoque com batata frita, que no início da corrida ainda me daria algum trabalho a acabar de digerir.

Saímos do restaurante e eu deparo-me com uma tabuleta na janela de uma casa que grita: “ARREPENDA-SE!” Surpreendido olho novamente e rio-me com gosto ao constatar que o meu inconsciente me pregou uma partida. Na realidade a tabuleta tem escrito “Arrenda-se”.

Seja como for, já não vou a tempo. Ajoelhei, agora vou ter que rezar…

Tínhamos alugado um bungalow na Praia das Rocas e para lá no dirigimos, eu para me equipar, e a Lena e os miúdos para se deitarem.


Bungalows


Lá enverguei o material necessário para enfrentar a noite, que por sinal se anunciava razoavelmente quente: buff na cabeça, corsários Kalenji, camisola térmica da VCUF, manguitos e perneiras Compressport, meias de compressão CEP, os ténis Mizuno Wave Ascend 8 acabadinhos de chegar da Amazon no próprio dia e ainda por estrear. Se tivessem demorado mais um dia que fosse lá teria eu que correr com o modelo anterior, já todo esburacado dos milhares de quilómetros que fiz com ele desde que o comprei em 2013.

Os homens são mesmo assim, só compram roupa nova quando aquela de que gostam mais se está a esfarrapar toda…

Coloquei na Mochila de Hidratação (Salomon XA skin pro 10+3) todo o material obrigatório e ainda mais algum, que eu na montanha não gosto de facilitar: manta térmica, apito, o casaco impermeável da TrangoWorld, dois frontais (um Petzl MYO RXP e outro Petzl mais fraquinho), ambos com pilhas de reserva, para o caso de mandar alguma cabeçada num ramo e partir o frontal (não se riam, já me aconteceu…) Há quem parta os ditos, eu parto o frontal…

De noite sem frontal não há nada a fazer. Ou seguimos apoiados por alguma alma caridosa ou temos que parar, com riscos para a nossa integridade física, caso a meteorologia esteja agreste. Eu não facilito nada neste ponto.

Mas prosseguindo a lista, copo com 15cl de capacidade, no mínimo, por razões ecológicas, para não multiplicar o plástico, alimentação de reserva (10 géis de 41g cada), 6 carteiras Redrate com eletrólitos, 2 comprimidos de anti-inflamatório apenas para emergências (é um risco acrescido para a função renal), 6 pastilhas imodium-rapid (para aqueles problemas que se resolvem no mato…), telemóvel com bateria carregada, luz traseira vermelha, ligadura elástica auto-aderente 3-M e sobretudo 2 bidons com capacidade de 500 ml cada.

Na mochila coloquei ainda uma t-shirt caso o tempo aquecesse demasiado. Nas mãos levarei as luvas sem dedos e os bastões Z-Pole Ultra Distance da Black Diamond (umas pequenas maravilhas da tecnologia).

O GPS é o meu velhinho Garmin 310XT que já percorreu largos milhares de quilómetros na minha companhia.

Esta crónica já parece um tratado de Product Placement, mas uma das vertentes interessantes do Trail é mesmo o nível de sofisticação que o material desportivo atinge, face à corrida de estrada e pista.

Antes de envergar toda esta armadura, passei uma quantidade generosa de vaselina pelos recônditos do meu corpo mais sujeitos à fricção. Garanto-vos que ao fim de uma centena de quilómetros de pele a esfregar contra pele, obtêm-se umas belas escaras, passíveis de serem mostradas num qualquer congresso de dermatologia.

Às 23h15 saí para a rua, bati à porta do Luís Ricardo e lá fomos os dois de encontro a mais um desafio na belíssima Serra da Lousã.


Foto do Luís Ricardo


Às 23h30 estávamos novamente na Praça da Notabilidade onde entregámos o saco com o equipamento para trocar nos 60 km, no abastecimento da Lousã. Encontrámos muitos amigos e conhecidos destas andanças. Estava lá o meu treinador, Paulo Pires, sempre presente nestas ocasiões, sempre disponível para apoiar os seus pupilos.

As duas principais razões que me fazem adorar este desporto são as seguintes:

  • O prazer imenso de correr na Natureza.
  • O alto quilate das pessoas que descubro.




As provas do AXtrail, organizadas pela Go-outdoor na Serra da Lousã, no seio das tradicionais Aldeias do Xisto, são das minhas favoritas desde sempre.

Iniciei o meu percurso no Trail Running em 2010, com os 52 km do Ultra Trail da Geira Romana, organizado por outra referência da modalidade, o José Moutinho, grão-mestre da Confraria Trotamontes.

Em 2011 participei na minha primeira prova do Circuito AXtrail, na 4ª edição dos 32 km da #01 Série em Ferraria de S. João. No mesmo ano fiz o K42 em Condeixa, onde fiquei em 3º lugar no escalão M40, no mesmo pódio que duas grandes referências do Trail Nacional, o Pedro Marques e o Francisco Mira Gaio. Em 2012 voltei para repetir os 32 km da #01 Série e em Novembro participei no primeiro UTAX, com 82 km. No ano passado, mercê de uma lesão, apenas pude participar na distância curta do UTAX, o TSL, com 42 km, que não deixa de ser uma prova muito desafiante e muito interessante.

Sempre gostei muito destas provas, por razões acerca das quais já discorri profusamente neste meu blog.


Percurso

Altimetria


Aproveito para transcrever a descrição dos 109 km com 5650 m de desnível positivo (D+) que nos aguardavam, feita pela própria organização da prova:

«O percurso de 109 km de distância e cerca de 6000 m de desnível positivo, inicia-se na Vila de Castanheira de Pêra, na Praça da Notabilidade, tomando a direcção Noroeste para o Ameal e subindo depois por um fantástico single-track ao início do Parque eólico no cimo da Serra da Lousã, e continuando na direcção da Casa do Guarda Florestal. É então que se inicia a descida para as aldeias do Catarredor e Vaqueirinho, e daí para as Aldeias do Xisto do Talasnal (1.º abastecimento), Casal Novo e Chiqueiro (Lousã). O percurso segue para o "Terreiro das Bruxas", continuando depois na direcção da Ribeira do Conde, a partir de onde se sobe para o Parque eólico de Vila Nova (2.º abastecimento: Observatório de Vila Nova), já no Município de Miranda do Corvo, e alcançando depois a Praia Fluvial da Louçainha (Município de Penela). Ao chegar à aldeia com o mesmo nome, segue-se para Vila Nova (3.º abastecimento), e para a Sra. da Piedade de Tábuas e Gondramaz, onde se inicia um troço de percurso bastante técnico e de declive acentuado marcado pela presença da ribeira de Espinho, suas cascatas e pontes em madeira. A descida termina em Espinho, onde se encontrará o 4.º abastecimento do percurso.

Passados cerca de 8 km, o UTAX entra na vila da Lousã, onde estará instalado o abastecimento principal no qual os atletas poderão ter acesso ao seu saco de equipamento suplente. Da Lousã, o percurso segue pelo Caminho do Xisto - Rota dos Moinhos, passando ao lado da Fábrica do Papel do Prado, e acompanhando a Ribeira de S. João para montante, em direcção a um dos principais locais de visita deste concelho: o Castelo de Arouce, ermidas e praia fluvial. É neste momento que começa uma longa subida, inicialmente de suave inclinação até à Central Hidroeléctrica, que aos poucos aumenta de desnível, oferecendo em compensação excelentes panorâmicas. Depois de percorrer a levada, e de um longo troço de trilho técnico, surge a Aldeia do Xisto do Candal. Aos poucos abandona-se a aldeia e surge um novo trilho em direcção à aldeia de Cerdeira (6.º abastecimento). A passagem por esta Aldeia do Xisto adivinha o fim desta longa subida e depois de um último esforço começam a avistar-se os aerogeradores de Vilarinho e o Trevim (ponto mais alto da Serra da Lousã - 1205 m).

O percurso toma então a direcção de Góis e das Aldeias do Xisto de Aigra Nova (7.º abastecimento), Comareira e Pena, seguindo depois em direcção aos impressionantes Penedos de Góis, para mais adiante entrar no território de Castanheira de Pêra.

Ao chegar à Capela de Santo António e aos Poços de Neve, o trilho desce em direcção ao Coentral Grande pelo trilho do neveiro. Do Coentral, o percurso segue para as aldeias de Sarnadas e Pisões, continuando para a Praia Fluvial do Poço do Corga, Torgal, e terminando em grande com a passagem pela Praia das Rocas e o sprint final para a tão ambicionada meta.»






Pelas minhas contas, espero chegar à meta nas próximas 20 horas. Sei bem o que me espera, e o terreno, para além de muito técnico, não deverá estar nada fácil mercê da chuva que caiu profusamente nos dias anteriores. Em 2012 choveu o tempo todo e demorei 15h00 a completar os 82 km.





Às 00h00 em ponto soa o tiro da partida. Algumas centenas de pessoas estão alinhadas atrás da meta (havia 330 inscritos) e arrancam como se não houvesse amanhã. Bem sei qual a razão da pressa: umas centenas de metros adiante o percurso vai afunilar e começar a subir, o que tornará as ultrapassagens muito complicadas. O que a malta não se apercebe é que ainda faltam 109 km para esta prova acabar: há muito tempo para tudo. Apenas os líderes da corrida se deveriam preocupar com evitar engarrafamentos.



Single-track



Todos parecem animados. Chovisca um pouco. Alguns seguem de t-shirt, outros levam o impermeável ou o corta-vento vestidos. Prefiro levar apenas a térmica muito respirável, pois sei que por vezes terei frio mas noutra terei muito calor, sobretudo nas subidas inclinadas e não quero desidratar. É desconfortável correr com frio mas é ainda mais desconfortável correr encharcado no nosso próprio suor e sofrer intermitentemente com o vento inclemente.

Subimos, pela Serra acima, eu e o Luís Ricardo, em tandem, na direção do Parque eólico no cimo da Serra. São 5 kms até lá chegar. No alto, no meio do nevoeiro conseguimos ouvir bem próximo o forte zumbir das pás.


eólicas



O Luís vai forte, eu não tanto. A época já vai longa e este já lá vão 7 Ultras, com muitos kms e D+ acumulados nos músculos, tendões e articulações. Faço o que posso. O Luís vai-se refreando, adaptando-se ao meu ritmo. Estou-lhe grato pela companhia (já em 2012 fizemos o último terço da prova em conjunto, com ele a rebocar-me misericordiosamente). Nunca me agradou muito correr de noite, prefiro a luz do dia, e o terreno da Lousã é especialmente propício a incidentes. Para mais ainda não curei completamente uma entorse recente e o tornozelo vai acumulando ressentimento contra o esfoço a que o estou a obrigar. Suspeito que mais cedo ou mais tarde se vai rebelar contra mim e tentar fazer com que eu atire a toalha ao tapete. Iremos ver quem manda!

Prosseguimos nas trevas pelas Aldeias fantasmas de Catarredor e Vaqueirinho, esta última ocupada por uma comunidade hippie de nórdicos. Não se vê vivalma a esta hora imprópria para andar a explorar serranias por single-tracks com lajes de xisto escorregadias como gelo e movediças poças de lama onde afundamos as pernas até ao joelho. Por diversas vezes me salvo de cair mesmo no último momento. Devo estar protegido pelo Deus Nórdico dos inconscientes, se é que tal personagem faz sequer parte do panteão de divindades loiras e brutais.



Abastecimento do Talasnal



Ao fim de 16 km chegamos ao primeiro ponto de suporte de vida, o abastecimento do Talasnal. Conheço bem esta Aldeia e já aqui pernoitei. É uma pérola da nossa cultura, hoje vazia, com um único habitante permanente, uma espécie de hermita recluso. O pequeno comércio abre apenas ao fim-de-semana, pequenas lojas onde se servem bebidas e doces regionais e onde se vendem algumas das especialidades locais.



Talasnal



Em tempos idos, quando ainda era habitada, a população vivia da omnipresente castanha e pouco mais.


Aldeia do Xisto



Comemos sofregamente algumas batatas fritas, pelo sal, marmelada, amendoins, bebemos água e isotónico e partimos novamente.

Um pouco adiante o caminho separa-se em dois: o Ultra Trail para a esquerda e o Trail para a direita. Seguimos agora em direção ao Observatório de Vila Nova. Pelo caminho passamos pelas Aldeias do Casal Novo, do Chiqueiro e pelo Terreiro das Bruxas. A certa altura o companheiro e amigo Paulo Jorge apanha-nos, juntamente com um grupo de atletas, e prosseguimos juntos. A água já se me tinha acabado e resolvo encher o bidão num dos inúmeros cursos de água que caiem serra abaixo. Água é coisa que não falta nesta serra!

Finalmente chegamos ao Observatório, no km 28, ao fim de cerca de 5 horas de prova. Estamos no alto da Serra. Vamos ter que descer até ao abastecimento do km 37. Descer não é mais fácil do que subir, e temos que fazer um esforço enorme a fincar as pernas no chão para não escorregarmos e cairmos. É extremamente desgastante para os músculos das coxas, os quadricípites. A determinada altura vejo-me forçado a tomar um anti-inflamatório pois as dores no tornozelo já são difíceis de suportar. Passa-me brevemente pela mente o receio de não acabar a prova. É o maior pesadelo do Trail Runner. Pelo menos é o meu maior pesadelo. Já terminei 27 trails com mais de 42 km e nunca tive que desistir em nenhum. Não há-de ser este o primeiro!

Se necessário abranda-se. Se não se conseguir correr, anda-se. É possível percorrer rapidamente vários quilómetros em marcha a um ritmo vivo. É preciso ter a humildade de nos adaptarmos à prova que estamos a viver e ajustar as nossas expetativas de acordo com o desenrolar da mesma.






Estamos no km 37, em Vila Nova, cerca das 6h30 da manhã. Ainda é de noite. Será necessário mais cerca de uma hora até o dia clarear finalmente. É já com alguma ansiedade que aguardo o momento do sol despontar atrás da serra. Sei que ganharei nova vida quando isso acontecer. Devo ser o inverso de um vampiro.

Agora marchamos em direção ao abastecimento de Espinho, no km 52. Estamos a passar pelo troço que se dirige para Gondramaz e que é dos mais técnicos que iremos encontrar. Este troço é comum ao Ultra Trilhos dos Abutres, que se realiza no fim de Janeiro. Felizmente o dia já clareia e podemos ver melhor o terreno que pisamos.

Vamos progredindo o melhor que pudemos. Iremos passar por Gondaramaz no km 47 antes de finalmente chegarmos à Aldeia de Espinho no km 52, cerca das 9h30. Até aqui a progressão ainda faz adivinhar um tempo final na ordem das 20 horas. Vamos ver se nos aguentamos nos cinquenta e picos kms que ainda faltam percorrer.

Recordo-me bem do abastecimento de Espinho da edição de 2012. Nessa edição este abastecimento já cheirava a meta, uma vez que a prova tinha tido início na Lousã e aí terminaria. Recordo-me particularmente do amigo Vitorino Coragem à entrada do abastecimento com uma bagaceira numa mão e um sorriso nos lábios.

Desta vez ainda só vamos a meio. Coragem, há que continuar! A Lousã está a uns meros 8 kms. Aí encontraremos com certeza um Oásis, com os sacos de muda de roupa e um abastecimento que esperamos seja mais substancial.

Às 10h30 chegamos à Lousã, km 60, e ao abastecimento principal. Infelizmente não encontramos a sopa desejada, mas pela parte que me toca ingiro grandes quantidades de pão com chourição, tostas com mel, marmelada, bananas, gomos de laranja, batatas fritas, coca-cola, etc. Vou sair dali a rebolar...

Decidimos os 3 não trocar de roupa. Está a chuviscar e o terreno continua muito molhado. O nosso raciocínio é que não vale a pena trocar nada pois vamos ficar molhados na mesma. Após um breve repouso partimos novamente, desta feita em direção à Ribeira de S. João, e ao Castelo de Arouce, ermidas e praia fluvial.

Quando estamos a subir em direção ao Castelo passam por nós os 3 líderes da corrida de 42 km, reconheço o Pedro Marques e o Marco Martinho, que sobem em grande ritmo.

A nossa previsão confirma-se. Breves kms após deixarmos a Lousã vemo-nos forçados a enfiar as pernas na ribeira, com água até aos joelhos. Rimo-nos ao pensarmos em todos os companheiros de aventura que tiveram o cuidado de trocar as meinhas e mesmo os ténis por equipamento sequinho. O trail é mesmo assim, vamos passar 20 horas molhados até aos ossos.

Tal como eu previra, com o novo dia e o abastecimento mais substancial dos 60 km ganhei uma nova vida. Sinto-me recuperado das agruras da noite. Estou quase eufórico. Será do café? Bem vou precisar pois ainda há muito desnível por vencer.



Levada


Passamos por uma levada estreita, com um abismo do lado esquerdo para onde não convém nada cair. Vamos sendo ultrapassados por atletas da corrida curta, que seguem num ritmo muito mais vivo do que o nosso. Chegamo-nos para o lado para os deixar passar. É uma das regras não escritas do trail: se alguém estiver mais forte do que tu e te quiser ultrapassar, facilita a monobra!

Estamos agora a subir em direção à Aldeia do Xisto do Candal e de seguida para a Aldeia de Cerdeira onde se encontra o 6º abastecimento.

Sou ultrapassado por alguns companheiros do TSL, o Ricardo Bomtempo, o João Mota e muitos outros, que nos deixam palavras de incentivo, do tipo: "seu maricas, não consegues andar mais do que isso?!" Parecemos camiões TIR a rolar devagarinho pela faixa da direita enquanto os desportivos nos ultrapassam velozes pela esquerda…





As escadarias nas aldeias do Xisto são muito inclinadas e custam-me imenso a subir. Vou sentindo cãibras que me dificultam muito a marcha. Quando por fim chego ao 6º abastecimento no km 70, às 13h00, resolvo dissolver as minhas saquetas de sais em água e beber a mistura resultante. Como ainda quantidades industriais de chourição coberto por sal refinado Vatel.

O truque resulta, e as cãibras dão-me folga. Encaminhamo-nos agora para o abastecimento de Aigra Nova, no km 78. A determinada altura, ao chegarmos a um estradão, o caminho separa-se novamente e o Ultra Trail vai para a esquerda e o Trail para a direita.

Vamos subir, andar pelo alto, e subir e descer por uns trilhos recentemente desbravados, com uma progressão muito complicada, dificultada pelas inúmeras raízes salientes, silvas afiadas que nem facas e lajes de xisto. Passamos pelo Parque Éolico de Vilarinho e encontramos uma descida muito acentuada que termos de fazer antes de chegar ao abastecimento de Aigra Nova onde chegamos às 15h00. É aqui que finalmente encontramos a sopa prometida e há tanto tempo desejada. É uma autêntica sopa da pedra, com couves e feijão. Adoro e repito umas duas vezes.

Olho ao redor e parece-me que neste abastecimento a malta já tem um ar bastante desgastado. Imagino que devo estar igualmente com aspeto destroçado. Enfim, já só faltam 30 km. Lá havemos de chegar.

Nestes últimos abastecimentos temo-nos cruzado frequentemente com os mesmo companheiros, o Zé Capela, a Amélia Costa e outros. É reconfortante ver caras conhecidas.

Daqui saímos em direção ao ponto mais alto do percurso, aos 92 km e 1150 m de Altitude, no Trevim, já perto das Antenas, antes da Capela de Sto. António e dos Poços de Neve. Ao fundo divisamos as silhuetas de alguns companheiros que nos precedem na subida e que imergem no nevoeiro. Ainda nos vai custar a lá chegar no meio de nevoeiro cerrado, e da subida acentuada, mas por lá passamos às 18h00. Ainda nos faltam uns 3 km até ao abastecimento do Coentral. Queremos chegar lá ainda de dia.

A descida é muito técnica e fazemo-la em marcha. Somos ultrapassados por vários companheiros que correm por ali abaixo. Eu já não me atrevo a correr com receio de me despenhar pelas fragas.

Lá chegamos ainda de dia ao abastecimento, às 18h40. A primeira pessoa que encontramos é o Fernando Pinto, que nos pergunta jocosamente, “então ainda por aqui?!” – “Hê pá, isto não dá mais”, respondo.
“- Então ainda há muita gente pela serra?”
“- Alguns…”

Todas as organizações deste tipo de prova passam por alguns momentos de ansiedade. Até o último atleta cortar a meta é uma preocupação constante. Para complicar alguns fazem-se ao trilho sem estarem preparados para completar um desafio destes. Para isso é que existem tempos limites de passagem, mas é sempre complicado gerir algumas situações.

Seguimos. A partir daqui é uma descida suave com terreno fácil, até a meta em Castanheira de Pêra a 11 km de distância.

No asfalto damos largas ao entusiasmo e aceleramos a fim de tentarmos chegar o mais depressa possível. As 20h00 ainda são possíveis.

No entanto o joelho do Paulo Jorge ressente-se da dureza do asfalto e forçamo-nos a abrandar. Talvez seja pelo melhor pois não sabemos se aguentaríamos um ritmo daqueles durante os kms que ainda faltam. Também qual é o interesse em fazer mais ou menos uma hora neste ponto da nossa prova? É completamente irrelevante. O que interessa é chegar ao fim.

Estes kms finais parecem nunca mais acabar. O Fernando tinha-nos dito que os estradões tinham sido substituídos por trilhos e a certa altura essa afirmação confirma-se. Somos obrigados a fazer umas acrobacias numas piscinas em Poço de Corga. Ainda enfiamos mais algumas vezes os ténis em poças de lama. Por fim enfiamos por um single-track que desce para Castanheira. O Paulo Jorge adivinha: vão-nos fazer passar pelo rio de certeza! Bem dito, bem feito! Vamos mesmo atravessar a ribeira com água pelos joelhos e uma corrente que ameaça fazer-nos mergulhar na água fria. Bem, como anti-inflamatório natural não está nada mal e de qualquer forma tínhamos que lavar os ténis…



Ribeira



Lá atravessamos mais este obstáculo e em mais umas centenas de metros avistamos a meta. Arranjamos forças para um sprint final. Uns metros antes da meta a filha do Luís e os meus filhos juntam-se a nós na apoteose final. Cruzamos a meta todos de mãos dadas, às 20h41m.


O Trio Maravilha


Ficamos a meio da tabela, nos lugares 80, 81 e 82. Atrás de nós ainda haveriam de cruzar a meta mais 78 atletas. A contagem seria encerrada, em 24h47m, pelo Vitorino Coragem, que aos 61 anos de idade continua cheio de força.

O primeiro classificado foi o Luís Duarte, da RUN.PT, que acabou com um magnífico tempo de 13h06m. Impressionante mesmo!

Foi para mim uma experiência diferente fazer toda a prova com mais dois companheiros de jornada, e grandes amigos, o Luís Ricardo e o Paulo Jorge, que muito enriqueceram esta aventura. Repito: O Trail é a partilha de momentos únicos com pessoas que admiramos.

Possa eu viver muitos anos com saúde para poder usufruir desta paixão!

Afinal não me arrependi, apesar de ainda estar todo empenado, enquanto escrevo estas linhas, duas semanas depois de terminar o desafio.

Em 2015 esta prova fará parte do Circuito Nacional de Trail Ultra Endurance, e tenciono cá voltar para fazer a minha peregrinação anual em torno da Serra da Lousã.

Do Circuito constarão ainda o MIUT, que tenciono repetir, o UTSM, em que também participo desde a primeira edição e o UTCTS, em que não poderei participar pois a Gala de Entrega de Troféus da ATRP terá lugar na noite da prova. Tenciono assim terminar 3 das 4 provas com 3 dígitos e ainda realizar finalmente o sonho de completar os 168 km do UTMB, em Chamonix.

Vai ser um ano em cheio!




Outros Blogs com crónicas interessantes sobre a prova:


...Uivos de Lobo...

Quarenta e Dois


Vídeo do UTAX, prova de 109 km:




Vídeo do TSL, prova de 42 km:


TSL AXTrail 2014 from João Vaz on Vimeo.




Se gostaste desta Crónica, recomendo a leitura desta outra, com o relato de uma aventura de 214 km nos Pirinéus Catalães, na terra do Kilian Jornet (é só carregar no link):


Volta Cerdanya UltraFons


Comentários

  1. Parabéns e Obrigado pelo relato da UTAX 2014, ao ler parecia que estava a reviver a minha própria experiência nesta prova.
    Após o abastecimento da Lousã (60km) fui por diversas vezes e durante algumas dezenas de km's na vossa companhia, incluindo quando o Bomtempo passou por nós.

    Uma vez mais obrigado pelo relato e pela companhia. Bons treinos e boa sorte para os novos desafios, e um até breve, quem sabe, novamente por um destes trilhos.
    Filipe

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  2. meu Bom Amigo Luís
    ...as tuas palavras, transportam-me ao nosso passado!!!
    ...ao nosso passado recente, por relembrar o privilegio que tive em partilhar da vossa Extraordinária companhia na conquista deste Desafio d´Aventura apelidado de UTAX...
    ...ao nosso passado longínquo, porque foi numa edição do circuito AXtrail que nos conhecemos e não só evoluímos nos Desafios, como também o tempo tem fortalecido as nossas amizades!!!
    ...acrescento que entre o muito que apreciamos no AXtrail, este possui o cordão umbilical deste "Trio Maravilha" ficando provado que o Trail é a partilha de momentos únicos com pessoas que admiramos, sendo apenas necessário vivermos muitos anos com saúde para poder usufruir desta paixão, conforme referes...
    ...pelo que descreves, iremos novamente trilhar em comum alguns Azimutes em 2015...
    ...permaneço muito grato pela vossa Amizade!!!
    Abraço, lfmricardo

    ResponderEliminar
  3. Belo relato Luís. Cá estou eu à beira de uma aventura e venho beber um pouco da tua experiencia nos teus relatos.
    Acima de tudo encheraum pouco a mente de motivação. Vou precisar de toda a que conseguir. Sem dúvida que nos enches de motivação quando lemos as tuas aventuras, e é um orgulho conhecer te.

    Um abraço e boas aventuras.

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