De tudo ao meu amor serei atento Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto Que mesmo em face do maior encanto Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento E em seu louvor hei de espalhar meu canto E rir meu riso e derramar meu pranto Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure Quem sabe a morte, angústia de quem vive Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama Mas que seja infinito enquanto dure.
- Vinícius de Moraes
O aziago ano de 2020 está fechado.
Parece que vem aí a vacina para combater o Covid. Vamos ver quanto tempo levará a administrá-la à população e quando (e se) teremos finamente a tão almejada "imunidade de grupo".
Eu sou um crente fervoroso no poder da Ciência e estou otimista.
Desde os 143 kms do Estrelaçor que tenho treinado muito pouco. Serviu para repousar o corpo e a cabeça e infelizmente para engordar também.
Agora há que recomeçar a treinar com cabeça, tronco e membros.
Para já, estou incrito nos 165 kms do TransPeneda-Gerês, a ter lugar de 3 a 5 de Junho. Servirá de preparação para o TOR (meados de Setembro).
"Ando
com fome de coisas sólidas e com ânsia de viver só o essencial. Pessoalmente, penso que chega um
momento na vida da gente, em que o único dever é lutar ferozmente por
introduzir, no tempo de cada dia, o máximo de "eternidade"
- João Guimarães Rosa
Here is a compilation of all my Posts related to Tor Des Géants. As you can see, I really obsess over this race.
330 km / 24.000 mD+
Six friends raced in 2015. The weather was extreme and the race had to be interrupted. Only 6 runners reached the final line. The winner was Patrick Bohard, a 51 year old athlete:
In 2015, after completing the 170 kms of Ultra Trail du Mont Blanc, I set my sights on Tor des Géants. Unfortunately, in the summer of 2016 I did not feel prepared to run such a challenging race:
The trail is a tour of Aosta Valley following the two "High Routes" of the region, the Italian: Alta Via n.2 or French: Haute route n°2[3] for the first half of the race, and the Italian: Alta Via n.1 or French: Haute route n°1[4]
for the second half of the race. During the tour, the runners cross 34
municipalities, 25 mountain passes over 2000 metres, 30 alpine lakes and
2 natural parks. The minimum altitude is 300 m (985ft) and the highest
is 3,300 m (10800ft). The total elevation gain is about 24,000 m
(78700ft).[5]
It provides prizes for all participants who complete the run before the cutoff. The start and the finish are in Courmayeur.
The total length of the race is 330 km (205mi) which must be completed
in less than 150 hours. There are 43 refreshment points at which the
runners can eat, sleep and, if needed, obtain medical care. There are
also 7 life bases, which are bigger than refreshment points. They are
placed about every 50 km (31mi). Because of its difficulty, many
athletes do not complete the trail. The completion rate is about 60%.
Around 2000 volunteers are used to organize the race. Due to the
difference between the highest point and the lowest point, weather can
be an additional obstacle. As they travel, the competitors can
encounter sun, rain, wind, and even snow. The number of participants is
limited because of the complexity of managing people over the 330 km
trek. For the 2015 edition there have been 2291 pre-registrations. For
2016 it will be conducted under ITRA regulations, the governing body for trail races in the Mont Blanc and Alpine region.
The first inaugural edition was in 2010.
The 2012 edition was interrupted on the fourth night and stopped
on the fifth day at En Bosses (303 km). About 70 runners completed the
whole course.
The 2013 edition was marked by the death of the Chinese runner,
Yang Yuan. He fell and he hit his head on rocks during the first rainy
night of the race. There is a monument at the site of the accident. The
cairn has inscribed a poem written by Yang Yuan.
The 2015 edition was interrupted on the third night due to severe
weather and stopped on the fourth night, because Col Malatra got
covered by ice. Only six runners completed the whole distance.
In 2016 local authorities organized a competing race 4K VDA. The
suspected reasons were concerns for runner's safety and the costs. The
race started and ended in Cogne and went clockwise (unlike Tor).
Since the 2017 edition has been introduced a geolocation service via GPS system. Through the Tor des Géants website[1],
for each athlete are shown: time of pass at specific points along the
path, overall ranking, median speed, distance and elevation gain
traveled. There is also a map that shows the athletes live position[2].
“Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está a nossa vida, e mais ela é real e verdadeira. Por outro lado, a ausência total de fardo faz com que o ser humano se torne mais leve do que o ar, com que ele voe, se distancie da terra, do ser terrestre, faz com que ele se torne semi-real, que seus movimentos sejam tão livres quanto insignificantes. Então, o que escolher? O peso ou a leveza?”
- Milan Kundera
Moda Outono/Inverno 2021
Completada a única prova Pós-Covid deste desditoso ano de 2020, os 180K do Estrelaçor, está na hora de olhar para o futuro.
E o futuro que se divisa no horizonte passa pelos 330K do Tor Des Géants. Na verdade são 350 kms com 25.000 mD+.
Portanto urge começar a preparação o mais cedo possível.
Ainda em Fevereiro deste ano estava eu convicto que seria em Setembro de 2020 que teria a felicidade de cruzar a meta em Courmayeur.
"Não esqueço as palavras de Herculano a propósito de Garrett que ele repetiu dúzias de ocasiões ao longo dos anos:
– Por meia dúzia de moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias, menos de uma frase mal escrita
ou da ordem de Filipe Segundo ao arquitecto do Escorial
– Façamos qualquer coisa que o mundo diga de nós que fomos loucos"
- António Lobo Antunes
Crónica em episódios. Memórias de fulano.
Frigus detegere
A mariposa bateu suavemente as asas e lentamente tudo mudou. Os átomos próximos mudaram imperceptivelmente de posição. As suas velocidades reorientaram-se subtilmente, projetando toda a sua incerteza no futuro.
O diabo está nos detalhes. Não são os astros distantes e maciços que governam as nossas vidas. São multiplas pequenas microscópicas particulas que nos jogam de um lado para o outro, fruto dos seus minúsculos numerosos embates.
É o acaso ou a necessidade?
Atravessei dimensões fractais. Assim são as corridas de Trail Ultra Endurance. Se ampliarmos 180K na montanha, redescobrimos o mesmo padrão em 45K, 10K. O recorte da montanha é conforme, a vivência do percurso é similar, o esforço é homomorfico.
Morremos e ressuscitamos sucessivamente. Neste momento sentimos que não conseguimos avançar nem mais 1 km; daqui a nada estamos prontos a enfrentar o Adamastor.
Nunca se deita a toalha ao tapete antes da campainha final tocar. O segredo está na paciência.
A caminho de Teixeira!
12 kms de uma longa, progressiva subida, e outra descida. 900mD+. 900 mD-. Mas o dia muda tudo. A vasta paisagem alimenta o ânimo. Chego ao alto. Passo rente aos quixotescos moinhos. Voum, voum, voum... rodam as gigantescas pás.
Mais uma etapa completamente só.
Às 12h39 chego a Teixeira. Tenho 25h17 de prova. 121 Kms. 4.800 mD+. 5.900 mD-.
Neste PAC estão vários atletas. Concentraram-se aqui. Depois de uma corrida escassa de gente, encontro aqui um agrupamento deles. É um fenómeno estatístico. A redução temporária da entropia.
Entro dentro do abrigo. Servem-me uma bela bifana! Serve de almoço.
Agora há que subir o vale, rente ao ribeiro, a caminho do Alvoco. 12 kms em suave subida. Teixeira de cima, Teixeira de baixo, Vasco Esteves. De Vasco Esteves para a frente já conheço o percurso. Começa nas piscinas naturais. São uns 3 ou 4 kms até ao Alvoco.
Não consigo correr. Enceto uma marcha rápida. Vou ter que andar, pelo menos até à Torre. Depois se verá se recupero a capacidade de trotar.
Às 15h40 chego por fim ao Alvoco. É um verdadeiro Oásis. Entro no PAC da escola. Tem muito pouco alimento, mas, em compensação, tem o meu segundo saco de muda de roupa. Desta vez aproveito para trocar a térmica, os manguitos, as luvas e o buff. A roupa lavada faz-me sentir instantaneamente melhor. Troco também as meias e aproveito para bezuntar os pés com vazelina.
Ao todo demoro-me uma meia-hora nesta Base de Vida.
Saio para o exterior. O tempo está visivelmente a mudar. Prescindo de vestir já o impermeável pois no vale ainda não está frio. Entro no trilho.
Inicio a subida monstra. Serão 1.270 mD+ em apenas 7 kms. Surpreendentemente sinto-me bem a subir. Vou em bom ritmo. Sou acalentado pela certeza de que se chegar à Torre então alcançarei garantidamente a meta das Penhas.
Cruzo-me com vários atletas. Dois passam por mim mais ligeiros. Alcanço um grupo de 5. Penso que apenas dois deles estão em prova. Os outros são uma espécie de guarda de honra.
A chuva e o frio começam a fustigar-nos à séria. Agora principio mesmo a sentir-me enregelado. O que vale é que estou preparado para tudo. Desde a partida que carrego comigo, na mochila, uma segunda camada térmica de mangas compridas, calças impermeáveis, dois pares de luvas com dedos, um segundo buff para o pescoço, um gorro quente, a manta de sobrevivência, uma velinha e isqueiro, ligadura elástica para garantir mobilidade em caso de sofrer alguma entorse, um pequeno canivete (com as mãos enregeladas torna-se difícil manipular objetos), segundo frontal com pilhas de substituição, para o caso do primeiro sofrer uma avaria. E alimento de reserva. No País Basco ia entrando em hipotermia e o que me valeu foi ingerir várias barras e géis energéticos de uma penada.
Desde Marrocos que levo sempre o isqueiro e a velinha comigo (houve um
parceiro que necessitou de o usar, debaixo da manta de sobrevivência). É
material de sobrevivência do bom. É já um amuleto para mim, de que não
prescindo.
Visto a segunda camada térmica, o casaco e as calças impermeáveis, e ainda as luvas com dedos. Conjugado com o movimento, deixo de sentir frio.
Nos entrementes uma camarada pergunta-me se recebi o telefonema da GNR. Ao que parece a GNR está a ligar para os atletas que iniciaram a subida para saber onde estamos. A organização da prova, em conjunto com a GNR, decidiu que a prova seria interrompida nos vários PACs onde nos encontrassemos.
Quem estava no Alvoco, ai ficará. Quem chegar à Torre, idem, e quem estiver em Manteigas também.
O tempo está de facto a ficar muito mau. Apesar da nossa compreensível frustração, a decisão é bem tomada. O bater de asas da mariposa originou uma borrasca das grandes e perigosas para quem está exposto aos elementos na Serra.
Assim que chegamos ao planalto anoitece. Está nevoeiro cerrado. Não se vê um palmo à frente do nariz. Quem não tiver track no relógio está tramado. Vou atrás do grupinho de 5, e eles vão chamando por mim (fico-lhes muito grato). Cruzamo-nos com atletas perdidos, feitos baratas tontas. Subitamente um GNR assoma junto a nós. Guia-nos até ao PAC da Torre.
Entramos completamente encharcados. Alguns atletas estão cobertos por mantas. Contam-nos que houve dois que entraram em hipotermia.
A prova acabou. É um anti-climax mesmo estranho.
São 19h11. 150 kms, com 7.100 m D+, em 31h48
Sempre deu para fechar o circulo.
O Rui liga-me, solícito como sempre. Ficou com o Pedro no Alvoco. Aliás, parece que foi por minutos que eu não fui retido no Alvoco. O Fernando Banca, que lá chegou apenas 20 minutos depois de mim, por lá ficou.
Quer saber de mim e diz-me que o Eduardo lhes vai dar boleia para a Penhas. Eu ainda não sei como irei sair daqui. Ele fica de me ligar quando chegar às Penhas, para verificar se necessito de boleia.
Entretanto, os atletas que estão no PAC vão sendo todos recolhidos de carro, por acompanhantes. Eu estou a ficar cheio de frio, mas tenho de esperar mais um pouco, pois os voluntários que estão a desmontar o PAC irão dar-me boleia para as Penhas.
Finalmente saimos. O nevoeiro é intenso.
Deixam-me nas Penhas em frente à meta. Sinto que estou prestes a entrar em hipotermia. Corro para dentro do Luna Hotel, o refúgio mais próximo que encontro.
Por sugestão do Rui, ligo para a Ana Melo e Orlando a pedir-lhes para me virem buscar ao Hotel. Valeu-me a boleia de algumas centenas de metros do Orlando, até à porta do Chalet. Se tivesse que percorrer o caminho à chuva, teria certamente congelado.
Banho retemperador, seguido de uma muda de roupa seca, cortesia do Orlando, pois os meus sacos estão com o Paulo Raposo.
O Rui, a Ana e o Orlando foram o meu salva-vidas nesta última peripécia. Estou-lhes muito grato.
Nunca me tinha acontecido particpar numa prova de 100 milhas que foi interrompida pela tempestade. Não deixa de ser uma aprendizagem diferente. E bem vistas as coisas, para quem já completou meia-dúzia de provas nesta distância, é muito mais interessante ter uma experiência diferente, que se destaque e deixe memórias vívidas.
A bem dizer, as provas que me marcaram mais até agora foram aquelas que tiveram mais peripécias e dificuldades para ultrapassar.
Vem-me à mente a TED Talk do Nobel Daniel Kahneman, acerca do "experiencing self" e do "remembering self".
Temos dois tipos distíntos de vivências: as que experienciamos no momento em que as vivemos, e as que experienciamos através das memórias que delas formamos.
E que memórias eu carrego comigo!
"Há mais do que uma sabedoria, e todas elas são
necessárias ao mundo; não é mau que elas se vão alternando."
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer."
- Álvaro de Campos
Crónica em episódios. Memórias de fulano.
Noctibus equitare
Na distância subitamente impossível de percorrer, após Vide assoma medonho o Colcurinho. São 850 metros de vigoroso desnível positivo, concentrados em 8 kms. Estradão ascedente, cai-de-costas, interminável. O famoso Cumcaralhinho, do Pedro.
Ultrapasso o Fernando Banca, que vai mais lento na subida e mais rápido na descida. Desde a Torre que me vou cruzando com ele. Como é que o homem consegue ser tão ligeiro com um corpanzil maciço daqueles é algo que me ultrapassa...
Chego ao topo. A verdade é que, neste momento, as subidas custam-me menos do que as descidas. Subir é colocar decididamente um pé acima do outro. Descer é ir em queda permanente, travando para não rebolar. Venham as subidas, livrem-me das descidas. Subir ao céu, descer aos infernos.
Ao fim de mais 10 kms chego ao Piódão. Ainda é necessário atravessar a aldeia e subir um pouco até ao PAC espaçoso. Sou recebido pela Maria Saldanha de Azevedo. É uma querida. Arranja-me a comida que lhe peço. Aqui temos sopa quente, esparguete com bolonhesa, fruta, etc. Como tudo. O estômago já se vai revoltando, mas torna-se imperioso domá-lo.
Estamos apenas 3 no PAC. Eu, o Fernando e o espanhol que o acompanha.
São agora 02h15 da madrugada. 80 kms estão percorridos. 2.630 mD+ subidos. 3.360 mD- descidos.
Estou no ponto de partida da prova dos 100K, onde correm a Cármen Ferreira, o Luís Afonso, o Paulo Raposo, a Marina Marques, a Sandra Simões, e o Teodoro Trindade. A partida deles foi cerca das 21h00. Levam 5 horas de avanço sobre nós. Calculo que se encontrem algures entre Malhada Chã e Sobral de S. Miguel. Desejo que estejam bem. Estão nos meus pensamentos.
A mulher do apito, dinâmo de energia pura. O homem da juventude eterna. O sherpa da estrela polar. A shaman conduto das energias cosmicas. A guerreira das pilhas duracell. O poço de força. Adoro-vos!
Como todos nós sou um mistério. Um misto incongruente de solitário com gregário; de individual com social. Tanto me sinto bem sozinho, como necessito do outro. Vivo bem com estas duas realidades, estas duas dinâmicas. Sou dual.
Bem, está na hora de iniciar os 100K que faltam. Começo novamente a subir. Agora são 8 kms rápidos até Malhada Chã. 8 kms sem história. Ultrapasso o Cabeço do Açor e desço até Malhada. Chego lá às 04h40 da madrugada. Estou a meio da distância. Passaram 17h42 desde o início.
O PAC é minúsculo e apenas tem líquidos. Sou recebido entusiasticamente pelo Miguel Pinho. Hidratação, uns dedos de conversa, e saio para o escuro da noite. Tenho pela frente uma bela subida até ao Pico da Cebola, a 1.400m de altitude. Para lá chegar é necessário percorrer a crista da montanha, muito exposta ao vento. Está frio, muito frio. A sensação térmica é de graus negativos. Sorrateira, cai-me em cima a hora mais fria da madrugada.
Mantenho-me apenas com a térmica, os manguitos, as perneiras, as luvas, e o impermeável. Não chove e consigo gerar calor, trotando sempre que possível.
São 18 kms até Sobral de S. Miguel, mas parecem 30. Pelas 6h30 da madrugada começo a notar uma vermelhidão promissora no horizonte. Os demónios da noite afastam-se, cansados e abatidos.
Do alto divisam-se os vales envoltos em nevoeiro, quais lagos brancos.
18 kms totalmente sozinho. Sem ver vivalma. Perco-me nos meus pensamentos. Construo a minha teoria da consciência. Teoria do eu.
Só existimos na relação. É o olhar do outro que nos mostra quem somos. O eu emerge do diálogo entre módulos separados, embutidos no nosso substrato físico. Cada módulo não tem consciência de si próprio. É necessário um coro dinâmico de vozes em diálogo para que a consciência desponte. Eu vejo-te, tu vês-me. A consciência isolada é um fenómeno impossível.
Antes do Sobral ainda passo por Giesteira. Já é de dia. A 100 metros diviso um matilha de cães dentro de uma cerca. Quando chego perto constato que não há aqui nenhum cão. São videiras. Nunca tinha tido alucinações logo a seguir à primeira noite. Há sempre um primeira vez.
Às 08h54 chego finalmente ao Sobral. Estava a ver que nunca mais. Sou recebido pela Fátima Gonçalves. O PAC tem duas cadeirinhas cá fora e não é muito abundante em alimentos. Mas dá para repousar um pouco do cansaço da noite.
Sinto que completei mais uma etapa. Emergi da noite vitorioso. Tenho 22 horas de prova no lombo. 106 kms percorridos. 4.800 mD+. 5.900 mD-. 40 minutos de atraso relativamente à previsão das 42 horas.
Doem-me os pés, os tornozelos, os joelhos, as pernas, as costas, os ombros, os braços, os pulsos, até mesmo os olhinhos. Daqui em diante serei movido a teimosia pura.
Tal como João Sem Medo, temos dois caminhos por onde escolher: o asfaltado conduzirá à felicidade e o de pedregulhos à infelicidade. No entanto a felicidade tem um preço: consentir que nos cortem a cabeça. "para não pensar, não ter opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas".
João sem medo escolhe o caminho das pedras, mas recusa ser infeliz. Porquê? "Porque não quero!"