Trabalhar na construção

Summary Agosto de 1986. Em Lisboa apanhava o avião que me deixaria em New York.
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Agosto de 1986. Em Lisboa apanhava o avião que me deixaria em New York. 

O ano anterior tinha sido um ano complicado. Havia começado o meu percurso académico na Faculdade de Ciências, no curso de Biologia, e as coisas não tinham corrido bem. Após um começo auspicioso, o percurso começou a degradar-se. O golpe de misericórdia foram as cadeiras de Biologia Animal com o Professor Pedro Rodrigues. A minúcia do detalhe, a quantidade de pormenores que era necessário memorizar, deram cabo de mim.

A meio do ano fui atacado por uma depressão sem saber do que se tratava. Naquela altura falava-se em "esgotamentos", mas "depressão" não era um termo corrente.

No verão decido ir trabalhar para os EUA. O meu pai tinha uma prima que, juntamente com o marido, se tinha movido para lá.

Junto-me a eles. Eles alugaram uma cave em Newark, New Jersey, e eu ocupo um quartinho nessa cave.

Depois tenho que tratar das formalidades. Em Ferry Street, a "rua dos portugueses", atrás do balcão de uma taberna arranjo um cartão de segurança social, em nome de outra pessoa. Esta formalidade é essencial para que a empresa "Simões & Simões" me contrate. São dois irmãos da Murteira que estabeleceram uma empresa que faz as fundações em betão armado de vivendas no estado de Nova Iorque.

No primeiro dia acordo muito cedo, ainda noite cerrada. São 5 horas e 15. Temos que nos vestir para ir para a esquina onde a furgoneta da empresa nos irá apanhar para nos conduzir durante uma hora entre a bruma da noite até chegarmos aos armazéns da empresa, no estado de Nova Iorque. Chegamos ao amanhecer. 

Assim que chegamos começamos a carregar os camiões com as formas de madeira e metal que irão servir para conter o betão armado que formará os alicerces e piso subterrâneo das vivendas de madeira .

As formas são uns retângulos do tamanho de um homem, bem pesadas. 

Carregados os camiões, saímos aos pares na direção da obra. Mais um percurso entre meia a uma hora.

Só quando chegamos ao local da obra é que o tempo de trabalho começa a contar. Como somos todos imigrantes ilegais vemo-nos forçados a aceitar essas condições. Mas que é uma chulice lá isso é.

O trabalho é árduo. Descarregamos os camiões, descemos aos caboucos dos alicerces e começamos a montar o lego de formas assente nas fundações e sapatas de betão que previamente tinham sido contruídas. As formas são montadas com linguetas de metal que se prendem nos ferros que irão formar a estrutura das paredes.

Temos que passar óleo na parte interior das formas para que o cimento não adira às paredes. Na obra usamos roupas velhas pois iremos ficar cobertos de óleo e cimento ao longo do dia.

Nos primeiros dias a parte que me custa mais é o constante martelar para montar as formas, e depois para desmontar quando o cimento já tiver secado.

Recordo-me que de inicio até tinha dificuldade em suportar o peso de uma única forma. Ao fim do dia tenho imensas dores nos pulsos e nas articulações dos dedos. Dores que não me largam durante a noite.

Largamos a obra por volta das 18h com os camiões carregados de formas removidas de uma obra onde o cimento já secou. Mesmo remover as formas é trabalho duro, feito com pés-de-cabra, marretas, e aplicação de força para que a forma desgrude do cimento. E isto feito em equilíbrio periclitante em cima da parede de cimento.

Assim que largamos a obra o tempo de trabalho cessa de contar. Ainda temos que nos dirigir para o armazém, descarregar o camião e finalmente ser levados a casa em Newark. Pelas 9 e pouco estou deitado para tentar dormir o suficiente para enfrentar o novo dia. E isto repete-se 6 vezes por semana. Só no domingo é que temos folga.

Ao fim de 2 meses deste esforço extenuante já consigo carregar 2 formas em equilíbrio em cada braço e martelar muito mais assertivamente. Também tenho 18 anos e o meu corpo adapta-se rapidamente. Os meus dedos estão grossos como os dedos de um agricultor.

Os meus colegas de obra são quase todos portugueses ilegais. A maioria eram agricultores ou trabalhadores da agricultura e estão aqui em busca de uma vida menos insegura pois a agricultura umas vezes dá noutra não. 

A entrada na CEE deu-se a 1 de Janeiro desse ano, mas os subsídios ainda não chegaram.

Alguns deles entraram nos EUA de mesma forma como eu, com vistos de turista, outros pelo Canadá, escondidos em camiões TIR.

Alguns são analfabetos.

Só existem 2 tipos de pessoas: os que gastam o menos possível para amealhar o máximo e eventualmente poderem regressar à terra de origem com capacidade económica para fazer uma casa de estilo emigrante e comprar um mercedes para impressionar os conterrâneos; e os que gastam tudo em vinho e mulheres.

Na obra também existem tensões. Eu costumo andar emparelhado com o meu primo (que me pediu que o tratasse por tio, dada a diferença de idades; ele andará pelos quarentas). No entanto por vezes temos várias equipas a trabalhar na mesma obra. 

Um dos trabalhadores é um ex-polícia, grande e forte, que abusa da sua estatura para intimidar os outros. No meu caso é para me agredir verbalmente pela minha manifesta inexperiência. Ao fim de vários episódios não resisto mais e quando estamos ambos em cima do muro e eu tenho na mão a marreta que usamos para arrancar as formas, digo-lhe, de forma agressiva, para deixar de me insultar. Ele olha para mim com um olhar assassino, parece hesitar durante alguns segundos, mas nada faz.

O que é certo é que a partir daí  tratou-me de uma forma completamente diferente, protetora até, diria eu.

Os dias vão decorrendo sempre iguais. Aos domingos aproveito para ir visitar algumas universidades e avaliar a possibilidade de estudar nos EUA. Já percebi que esta vida de trabalho nas obras nunca irá levar a lado algum.

Ao fim de vários meses resolvo regressar a Portugal e retomar os estudos assim que for possível.

Como tinha entrado com um visto de turista de 6 meses ainda vou a tempo de regressar sem ter problemas.

Não há nada como trabalho duro para fazer voltar a vontade de estudar.



https://www.finehomebuilding.com/project-guides/foundations-and-masonry-work/forming-and-pouring-foundations



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