MIUT - Madeira Island Ultra Trail

Summary Abro os olhos sobressaltado! Onde estou eu? Como vim aqui parar? Olho lentamente em redor… aos poucos as imagens vão-se fixando e a memória vai retorn
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Primeiros 100 km da prova, até a bateria do Garmin morrer...











Lector in fabula


Sempre preferi os loucos…

Abro os olhos sobressaltado! Onde estou eu? Como vim aqui parar? Olho lentamente em redor… aos poucos as imagens vão-se fixando e a memória vai retornando... Estou na Ilha da Madeira, a subir vagarosamente para o Pico Ruivo. Devo ter cerrado os olhos momentaneamente e passado instantaneamente pelas brasas. Que horas são? Olho para o Garmin. São 11h40. Ainda só estou a subir há 20 minutos.

Tocados pelo fogo.

O truque é nunca parar. Custe o que custar, continuar sempre a colocar um pé adiante do outro. Subir degrau a degrau. É como andar de bicicleta. Se pararmos caímos.

“Os que levam a vida inteira como alcoólicos e neuróticos são mais interessantes, as pessoas falam deles e contam as suas anedotas, enquanto os tranquilos só fazem o seu trabalho.”
- Joyce Carol Oates

Esta subida, este quilómetro vertical, está-me a custar muito mais do que os dois anteriores. Tenho que subir dos 606 m para os 1781 m e a cada passo sinto-me esmagado pela força impiedosa da gravidade. Imagino-me no horizonte de um massivo buraco negro a ser despedaçado pelas titânicas forças de maré.


R_{ik} - {g_{ik} R \over 2} + \Lambda g_{ik} = 8 \pi {G \over c^4} T_{ik}






Vou subindo vagarosamente, como um paquiderme lento, sem pressas. Curral das Freiras ficou para trás. Agora não há volta a dar. Desistir não faz parte das minhas opções. Não posso, não devo, abrir esse precedente. Em cada corrida, em cada desafio, em cada prova, uma fibra crucial que me faz seguir é essa certeza reconfortante de saber que nunca desisti.

"... pois enquanto a loucura provém de Deus, a sensatez é apenas humana."
- Sócrates, Fedro

Subo, subo, subo... suo em bica, está calor. Demoro uma eternidade a chegar ao posto de controle de Boca de Torrinhas aos 1500 m de altitude.


Posto de Controle de Boca de Torrinhas


Um elemento da organização perscruta o meu rosto concentrado. Pareço-lhe bem. Diz-mo.

"O raciocínio do maníaco é volátil. Salta de um tema para outro e não consegue fixar-se em nada."
- Eugen Bleuler


Levanto os olhos para os gigantes de basalto que se erguem imponentes e ameaçadores acima de mim. Vem-me à memória o ilustre cavaleiro D. Quixote de La Mancha da triste figura.





Ainda vou ter que contornar vários destes picos escarpados. A paisagem é simplesmente deslumbrante. Vê-se o mar, vê-se a serra, têm-se uma vasta panorâmica desta ilha esculpida pelos Titãs ancestrais, pais dos deuses do Olimpo. Irá a montanha engolir-me como Cronos fazia com seus filhos?

O que é o tempo? O tempo flui? O que é fluir senão mudar relativamente à passagem do tempo. Como pode o tempo ser medido relativamente a si próprio? Existe independentemente das coisas? Ou apenas emerge na relação entre elas, tal como a temperatura ou a entropia? Está pré-estabelecido? Entranhado na tessitura do universo? É um universo sem dinâmica? Estático. Criado fora do tempo e sem qualquer necessidade dele.






Após aquilo que me pareceu uma eternidade lá cheguei ao abrigo de Pico Ruivo, às 13:51, quase duas horas e meia depois de ter deixado a segurança do Curral das Freiras. Acabei de fazer estes 8,8 km com 1120 m de D+ a um ritmo paquidérmico de 2,99 km/h, mas a 3ª subida estava enfim conquistada! As pernas dão de si, bamboleantes de tanta subida. Estou seco que nem um carapau. Sinto uma vertigem. Parece que vou desfalecer. Necessito ingerir água e sal. É uma boa ocasião para recorrer às carteirinhas de eletrólitos redrate que trago comigo. Fazem maravilhas pelas cãibras.

Coragem, já só faltam 5,5 km até ao Pico do Areeiro, ponto mais alto da prova. Permaneço sentado alguns momentos a recuperar o sangue-frio. Cada vez que passo por um destes pontos extremos tenho que recalibrar a mente a fim de a preparar para a próxima etapa. Encho a mochila de hidratação com um litro de água para o que der e vier, e meto-me a caminho.

“Não conhecemos as nossas próprias almas, menos ainda a alma dos demais.”
- Virginia Woolf

A paisagem desdobra-se em ondas cada vez mais magníficas. Nada nos prepara para a incrível beleza em estado bruto do cenário em que imergimos. Falésias desfalecem por precipícios escarpados. Atravessamos túneis escavados na rocha. Equilibramo-nos nos gumes de picos afiados, tendo por amparo de um lado o céu azul e do outro as nuvens diáfanas.






Vou percorrer uma via sacra de estação para estação em degraus esculpidos na terra, de pedra, feitos de toros de madeira, e até mesmo de metal, alguns com meio metro de perna alçada, outros com inclinação vertiginosa.


A determinado momento emerjo numa estreita via de sentido único, ladeada por cabos de aço, que me encaminham na direção do meu Olimpo. Já se vislumbra o radar e o abastecimento.







São 15:19 quando entro no oásis do Pico. Levo várias horas de vantagem em relação ao meu progresso do ano passado.

“Nada se emenda bem nos livros confusos, mas tudo se pode meter nos livros omissos. Eu, quando leio algum desta outra casta, não me aflijo nunca. O que faço, em chegando ao fim, é cerrar os olhos e evocar todas as coisas que não achei nele.”
- Machado de Assis, D. Casmurro

Esta crónica é daquelas em que se conseguem ver as costuras à medida que o autor vai urdindo uma teia apertada de factos e mistificações da memória.




Zero horas. Soa o tiro de partida. Ecoa-me entre as orelhas. Saímos do garrafão à desfilada desgarrada. Logo à saída de Porto Moniz tem início a primeira subida, pelo alcatrão. São 2 km iniciais com 400 m de desnível positivo (D+). No gráfico é aquele anão inicial, mas para mim é equivalente ao perfil da Serra de Sintra, onde treino habitualmente. O restante são gigantes telúricos que explodem verticais das entranhas da terra.










Vou lançado, animado pela adrenalina da partida. O grupo vai compacto. Ninguém quer ceder lugar para evitar o afunilamento na descida que se avizinha. Subimos. Entramos num single-track para descer.

Sou transportado para a partida do MIUT 2014, quando, precisamente neste ponto, o sujeito que ia à minha frente resolveu que era uma boa ocasião para aliviar a bexiga… em andamento!

- Psst’á quieto! Que me salpicas as sapatilhas!!!

Se a mim me fez isto, imagino o que terá sucedido ao camarada que ia à frente deste cromo…






À medida que nos aproximamos de Ribeira da Janela apercebemo-nos da enorme algazarra que vai saudando os Trail Runners que passam. A curva da estrada está repleta de gente que vibra com a nossa prova. É raro mas refrescante encontrar um apoio tão esfusiante numa prova de Trail. Faz lembrar a subida à Sra da Graça, mas sem bicicletas.

Começa aqui o primeiro grande desafio do MIUT, a primeira de 3 subidas demolidoras, 3 quilómetros verticais, pejados de escadas, escadinhas e escadeirões, regulares, irregulares, secos, molhados, escorregadios, feitos de terra fofa, de toros de madeira, de pedra rija, com musgo, com lama, uma pletora de formas e feitios, enfim, o cardápio completo.

No ano passado morri logo nesta primeira subida para o Fanal e o resto da prova foi feito a gerir o prejuízo das subidas. Este ano estou sedento de vingança. A cabeça diz-me para refrear o ritmo mas o coração não deixa. Bem sei que é um risco tremendo, mas tenho que mostrar ao corpo quem manda. Devo-me isso a mim próprio. Subo a um ritmo fanático. Ultrapasso companheiros. Subo de forma completamente irracional, eu que costumo ser tão prudente em provas deste calibre.

E = mc^2


A mente transporta-me para um ano antes. Estou a subir este mesmo troço. Vou pesado, congestionado por uma infeção respiratória que me dificulta a respiração.  Dezenas de companheiros me ultrapassam e me tentam animar. Recordo-me do Paulo Pires e do Ricardo Belchior. O Ricardo confessou-me mais tarde que quando me viu ali tão lento temeu pelas minhas hipóteses de terminar a prova. Cada passo é dado numa desesperante lentidão. Sou o ser vivo mais solitário do universo.

“O Homem não é realmente um mas dois.”
- Robert L. Stevenson, Doctor Jekyll and Mr. Hyde.

Regresso ao presente. Suo profusamente. Levo apenas a térmica vestida e a t-shirt do meu clube, Run 4 Fun, mas o esforço da subida gera tanto calor que nem sinto necessidade de me proteger do vento.

Vamos subir 869 m em apenas 4,5 km, até chegarmos à primeira levada, um dos pouco troços da prova em que pode correr à vontade. Estamos na zona da Floresta Laurissílva, da Paisagem Protegida da Madeira. Infelizmente, como é de noite, não conseguimos usufruir da beleza desta flora ancestral em todo o seu esplendor.





Forma-se um pequeno grupo que corre em fila indiana. Vão-se aglutinando outros companheiros à medida que sincronizamos o nosso ritmo. Não é possível ultrapassar ninguém, o que para mim é um descanso. Só temos que nos preocupar em seguir o ritmo do companheiro da frente. Vamos saltando para um lado e para o outro do córrego de água sempre que necessário. Cerca de 5 km de progressão rápida, que desembocam numa subida de 2 km até ao abastecimento do Fanal, aos 16 km de prova e 1.156 m de altitude, onde chego às 02:30. Foi feita num ritmo alucinante de 6,5 km/h.






Alimento-me abundantemente. Todos os abastecimentos de sólidos no MIUT disponibilizam umas canjas excelentes que me forram o estomago. Numa prova destas a capacidade de nos alimentarmos é crucial para o sucesso. Todo o trato e função digestiva se vão deteriorando à medida que as horas avançam. O segredo é ter umas tripas de betão armado e não as maltratar demasiado! Nada de coca-cola ou outras substâncias que aumentem a acidez do estomago. Lá mais para o fim até a água me irá causar náuseas.

A seguir espera-me uma descida de que não tenho memória. Nem deste nem do ano passado. Não gosto de descidas noturnas. Aliás, detesto-as! Tenho péssima visão noturna. Mal vejo onde coloco os pés e apoio-me fortemente nos bastões para não cair. Os meus fantasmas esperam por estas ocasiões em que estou mais vulnerável para me assolar. Assaltam-me de todos os quadrantes. Esta vigília forçada não me poupa aos terrores noturnos.

“De repente invadia-me sem aviso, como se surgisse da escuridão, um medo pavoroso da minha própria existência.”
- William James



São 03:26. Acabo de passar por Chão da Ribeira. Tenho pela frente aquele que é o maior desafio do MIUT: a tremenda subida para Estanquinhos. Sobretudo os primeiros 4,7 km com o seu brutal desnível positivo de cerca de 1100 m. 24% de inclinação média! Degraus e mais degraus, e mais degraus e mais degraus. Irregulares, húmidos, barrentos, carrascos torcionários!




Um km vertical duríssimo, extremamente longo e húmido. O frio e o nevoeiro vão aumentando acentuadamente à medida que subimos. Sou ultrapassado pelo amigo Fernando Salvador que saúdo alegremente. Já quase no fim da subida começo finalmente a acusar o ritmo violento que tenho mantido. Arrasto-me até ao abastecimento, onde chego às 05:32. A temperatura corporal tem vindo a descer com o avançar da madrugada, e assim que paro para me alimentar começo imediatamente a entrar em hipotermia. É uma sensação aterradora, sentir que o corpo não consegue gerar calor para se aquecer.





Felizmente o abastecimento tem uma zona protegida onde alguns voluntários prestam assistência aos atletas. Já lá estão dois companheiros envoltos em mantas, frente a um aquecedor a gás. Colocam-me uma manta pelos ombros e praticamente me encosto ao aquecedor, tentando recuperar a compostura. Até sinto o cheiro dos pelos a tostar. Sinto lentamente o sangue a voltar a correr nas veias. Demoro-me uns 15 minutos tentando recuperar a coragem para retornar para o meio dos elementos inclementes.

Visto finalmente o impermeável. Vou precisar de toda a proteção que tiver disponível, que não é muita. Saio para o estradão a tremer de frio. Tenho que acelerar pela descida abaixo a fim de conseguir gerar algum calor. Vou alternando os bastões em cada mão pois as luvas sem dedos não me protegem o suficiente e os dedos rapidamente perdem toda a sensibilidade. A solução é levar uma mão de cada vez em cada bolso.

“A realidade é um produto da mais augusta imaginação”
- Wallace Stevens

Ao fim de 2 kms acaba o estradão e entramos em trilhos e levadas pela floresta Laurissilva. Em 2014 o dia saudou-me quando percorria uma levada lindíssima. Este ano vou percorrer todo este caminho ainda de noite cerrada. É uma pena. Recordo-me bem que a vista era magnífica.



Foto de 2014



São 9 km até ao abastecimento de Rosário, onde me deparo com o Luís Trindade. Ainda me cruzaria com ele algumas vezes ao longo do percurso até que no final me deixou irremediavelmente para trás. Este ano ele jogou pelo seguro e ganhou a aposta.

São 07:08. O dia está finalmente a começar a anunciar-se no tom mais pálido do céu para leste. É para aí mesmo que nos dirigimos, a caminho da Encumeada. 8 km para subir 500 m. Mais uma carrada de escadas. Depois foi descer 500 no alcatrão até chegar ao hotel onde se localizava o abastecimento. Cheguei lá às 08:23, mesmo a tempo de tomar o pequeno-almoço.

Enquanto ali estava, desce as escadas disparado o líder da prova de 84 km, a qual tinha tido início às 07h00 em Estanquinhos, aos gritos que lhe abrissem a porta de vidro que dá para a rua, o que se apressam a fazer não vá ele atravessar o vidro… Pouco depois passa o segundo, e percebo então porque é que o anterior vinha desembestado como se perseguido pelo próprio Belzebu.

“- A guerra ainda não terminou. Os Alemães avançam sobre Antuérpia.
- Decidi arrumar as botas definitivamente e não lançar nem mais uma bomba. Doravante pensarei apenas em mim.
- Mas suponha que todos pensavam assim?
- Nesse caso, só se fosse muito parvo é que pensaria de outro modo, não lhe parece?”
- Joseph Heller, Catch 22





Saio daqui mais reconfortado. O azul do céu dá-me um novo ânimo. Vou mesmo precisar de muito ânimo. A seguir espera-nos mais uma maldade. Depois de uma descida de 2 km, uma subida abrupta junta a uma conduta de água. Felizmente o troço seguinte é um trilho que ladeia a montanha e permite correr, a caminho do Curral das Freiras. A cada curva da montanha anseio por vislumbrar o Curral lá em baixo no vale. De cada vez sofro uma desilusão. Há ainda e sempre mais uma curva, mais uma montanha e é necessário subir até aos 1400m antes que nos deixem finalmente descer para o Curral. Pelo menos agora a descida é feita durante o dia. Tenho que descer 800 m. Venham eles!


Curral das Freiras




Chego ao abastecimento do Curral às 10:54. Estou esganado de fome. É normal, já percorri 61 km com mais de 4 mil metros de desnível positivo. Quantos milhares de calorias já consumi? Quanto gasto aos 100? Vingo-me no abastecimento. Para entrada, devoro 4 tijelas de canja onde misturo massa e carne picada. De seguida engulo o que me parece ser uma laranjeira inteira, marmelada, bananas, batata frita, amendoins, o que houver à mão. Os olhos até me saltam das orbitas.
 
Aproveito a muda de roupa para trocar as meias e a t-shirt. O resto mantêm-se igual. Às 11:20 saio para a estrada.

“Quando sabemos que algum amigo ou conhecido enlouqueceu, todos os que perscrutamos a nossa alma dentro de nós nos sentimos afetados (…) coisa que só poucos fazem. Pois todos albergamos o mesmo combustível para incendiar o mesmo fogo.”
- Herman Melville






15:40. Desço para Ribeiro Frio. Finalmente um troço relativamente suave! No entanto é apenas o início. Vão ser 10 km variados, com descidas um pouco mais técnicas, mas nada como o que vivi até aqui. Demoro 1:25 a fazer estes 10 km. Em Ribeiro Frio encho a mochila de hidratação e preparo-me para completar a última subida da prova, 3,7 km e 500 m até ao Poiso. Foi uma subida sem história. Às 17:49 chego ao abastecimento. Estou bastante avançado em relação ao ano anterior. Em 2014 quando saí daqui já era de noite. Este ano ainda tenho umas 3 horas até ficar escuro. A diferença crucial é que este ano estou muscularmente muito, mas mesmo muito mais massacrado. Isso e as solas dos pés que me doem como se tivessem milhares de minúsculas facas espetadas. Até tenho receio de espreitar. É agora nítido que os ténis já estão demasiado usados e não oferecem proteção suficiente para os meus pezinhos de menino da cidade.

Agora que remédio, há que aguentar até ao fim, de preferência com um sorriso nos lábios.

“Cada vez estou mais convencido que o mundo me quer dizer qualquer coisa, enviar-me mensagens, avisos, sinais.”
- Italo Calvino, Se numa noite de Inverno um viajante

Estamos a 1.386 m de altitude e vamos ter que descer até ao nível do mar, ao longo dos próximos 26 kms. Vamos ver se os quadricepts aguentam o balanço. Visto o impermeável. Não quero correr o risco de arrefecer num ápice, sem ter tempo para me proteger.

9 kms até à Portela, nos 596 m de altitude. As coxas aguentaram. Não me demoro no abastecimento. São 19:15 e quero avançar o mais que puder antes de anoitecer. No entanto no percurso até Funduras começo logo a perder gás. Até no estradão inicial me movo devagar. Depois entramos no trilho e com alguma frequência tenho que parar de correr e marchar um pouco. Estes 6 kms parecem-me os mais longos da minha vida. Demoro uma hora para os percorrer apesar de serem relativamente planos. 20:16 e ainda é de dia. Na Madeira anoitece e amanhece mais tarde do que no continente.



Levada



Faltam 11 km até ao Machico. Rás parta isto que nunca mais acaba! Esquece lá a ténue esperança de ainda chegar de dia.

Bora, a caminho!

O caminho agora torna-se bastante arisco. Sobretudo as descidas que são extremamente escorregadias. Começa a escurecer e tenho que voltar a colocar o frontal. Tenho muito cuidado onde coloco os pés e uso e abuso dos bastões para manter o equilíbrio. Onde possível desço nos degraus de madeira, apesar de serem mais duros para as coxas são bem mais seguros. Mesmo assim não consigo evitar 3 ou 4 quedas desamparadas, felizmente sem qualquer consequência.

Aquele que vê com demasiada clareza corre sérios riscos.

É ao lusco-fusco que chego à crista do monte que cai em falésia abrupta para o mar. Em 2014 tinha passado por aqui de noite cerrada, envolto no nevoeiro e não tinha ficado com noção alguma da magnífica paisagem que agora se me oferece. Paro para a contemplar. São imagens com esta que ficam implantadas na retina para sempre.







Passa por mim um espanhol. Digo-lhe para parar e apreciar toda esta beleza. Responde-me que posso cá voltar amanhã. Tá parvo ou quê?!! Amanhã??? Amanha vou necessitar de um transplante bilateral de pernas!

Bom, é altura de descer para a Ribeira Seca e daí para a longa levada que me levará por fim até ao Machico.



Machico



Vejo finalmente a praia e a tenda da organização, lá em baixo no meio das luzes. Uma descida rápida e estou a correr em terreno plano na reta da meta. Passo pela explanada onde sou saudado esfuziantemente por todos os turistas que lá se encontram a bebericar as suas cervejas. Até parece que sou o campeão nacional!

Ao fim de 22:19:07 cruzo a meta. Está a minha família à minha espera.



Meta



Mais uma vez comprovo que até a mesma prova nunca é igual. Cada ano é diferente. Seja a meteorologia, o percurso, ou nós próprios, nunca encontramos a mesma experiência. Por isso é que os Trilhos na versão Ultra Endurance não têm igual!

“A autonomia não é um estado que resulte de ideias relacionadas com a nossa importância ou da necessidade de independência, mas sim da possibilidade de viver sem restrições as próprias perceções, sentimentos e necessidades.”
- Arno Gruen, A traição do eu

















No seguinte gráfico compara-se os tempos de todos os participantes. A linha a vermelho é a Mediana (50% de participantes abaixo desse tempo). O ponto a vermelho é o meu tempo.

















10 primeiros masculinos










Comentários

  1. Fantástica prova e texto.

    Obrigado Luis por mais esta inspiradora aventura, ao alcance de muito poucos.

    Fico á espera da crónica

    Abraço

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  2. Parabéns pela prova, que está ao alcance de poucos, mas acima de tudo pela pessoa que és e que consegues transmitir tão bem! Mais um brilhante capítulo do teu Livro!

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  3. Bela prova Luis, brilahnte relato. Para o ano também vou lá pedir a desforra à ilha! Abraço!

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  4. Tantas horas gravadas em detalhe. Excelente Luís. Parabéns!

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