Insanidade nos Tempos de Covid - Estrelaçor 180K - A prova - Frigus detegere
Link para a segunda etapa
"Não esqueço as palavras de Herculano a propósito de Garrett que ele repetiu dúzias de ocasiões ao longo dos anos:
– Por meia dúzia de moedas o Garrett é capaz de todas as porcarias, menos de uma frase mal escrita
ou da ordem de Filipe Segundo ao arquitecto do Escorial
– Façamos qualquer coisa que o mundo diga de nós que fomos loucos"
- António Lobo Antunes
Crónica em episódios. Memórias de fulano.
Frigus detegere
A mariposa bateu suavemente as asas e lentamente tudo mudou. Os átomos próximos mudaram imperceptivelmente de posição. As suas velocidades reorientaram-se subtilmente, projetando toda a sua incerteza no futuro.
O diabo está nos detalhes. Não são os astros distantes e maciços que governam as nossas vidas. São multiplas pequenas microscópicas particulas que nos jogam de um lado para o outro, fruto dos seus minúsculos numerosos embates.
É o acaso ou a necessidade?
Atravessei dimensões fractais. Assim são as corridas de Trail Ultra Endurance. Se ampliarmos 180K na montanha, redescobrimos o mesmo padrão em 45K, 10K. O recorte da montanha é conforme, a vivência do percurso é similar, o esforço é homomorfico.
Morremos e ressuscitamos sucessivamente. Neste momento sentimos que não conseguimos avançar nem mais 1 km; daqui a nada estamos prontos a enfrentar o Adamastor.
Nunca se deita a toalha ao tapete antes da campainha final tocar. O segredo está na paciência.
A caminho de Teixeira!
12 kms de uma longa, progressiva subida, e outra descida. 900mD+. 900 mD-. Mas o dia muda tudo. A vasta paisagem alimenta o ânimo. Chego ao alto. Passo rente aos quixotescos moinhos. Voum, voum, voum... rodam as gigantescas pás.
Mais uma etapa completamente só.
Às 12h39 chego a Teixeira. Tenho 25h17 de prova. 121 Kms. 4.800 mD+. 5.900 mD-.
Neste PAC estão vários atletas. Concentraram-se aqui. Depois de uma corrida escassa de gente, encontro aqui um agrupamento deles. É um fenómeno estatístico. A redução temporária da entropia.
Entro dentro do abrigo. Servem-me uma bela bifana! Serve de almoço.
Agora há que subir o vale, rente ao ribeiro, a caminho do Alvoco. 12 kms em suave subida. Teixeira de cima, Teixeira de baixo, Vasco Esteves. De Vasco Esteves para a frente já conheço o percurso. Começa nas piscinas naturais. São uns 3 ou 4 kms até ao Alvoco.
Não consigo correr. Enceto uma marcha rápida. Vou ter que andar, pelo menos até à Torre. Depois se verá se recupero a capacidade de trotar.
Às 15h40 chego por fim ao Alvoco. É um verdadeiro Oásis. Entro no PAC da escola. Tem muito pouco alimento, mas, em compensação, tem o meu segundo saco de muda de roupa. Desta vez aproveito para trocar a térmica, os manguitos, as luvas e o buff. A roupa lavada faz-me sentir instantaneamente melhor. Troco também as meias e aproveito para bezuntar os pés com vazelina.
Ao todo demoro-me uma meia-hora nesta Base de Vida.
Saio para o exterior. O tempo está visivelmente a mudar. Prescindo de vestir já o impermeável pois no vale ainda não está frio. Entro no trilho.
Inicio a subida monstra. Serão 1.270 mD+ em apenas 7 kms. Surpreendentemente sinto-me bem a subir. Vou em bom ritmo. Sou acalentado pela certeza de que se chegar à Torre então alcançarei garantidamente a meta das Penhas.
Cruzo-me com vários atletas. Dois passam por mim mais ligeiros. Alcanço um grupo de 5. Penso que apenas dois deles estão em prova. Os outros são uma espécie de guarda de honra.
A chuva e o frio começam a fustigar-nos à séria. Agora principio mesmo a sentir-me enregelado. O que vale é que estou preparado para tudo. Desde a partida que carrego comigo, na mochila, uma segunda camada térmica de mangas compridas, calças impermeáveis, dois pares de luvas com dedos, um segundo buff para o pescoço, um gorro quente, a manta de sobrevivência, uma velinha e isqueiro, ligadura elástica para garantir mobilidade em caso de sofrer alguma entorse, um pequeno canivete (com as mãos enregeladas torna-se difícil manipular objetos), segundo frontal com pilhas de substituição, para o caso do primeiro sofrer uma avaria. E alimento de reserva. No País Basco ia entrando em hipotermia e o que me valeu foi ingerir várias barras e géis energéticos de uma penada.
Desde Marrocos que levo sempre o isqueiro e a velinha comigo (houve um parceiro que necessitou de o usar, debaixo da manta de sobrevivência). É material de sobrevivência do bom. É já um amuleto para mim, de que não prescindo.
Visto a segunda camada térmica, o casaco e as calças impermeáveis, e ainda as luvas com dedos. Conjugado com o movimento, deixo de sentir frio.
Nos entrementes uma camarada pergunta-me se recebi o telefonema da GNR. Ao que parece a GNR está a ligar para os atletas que iniciaram a subida para saber onde estamos. A organização da prova, em conjunto com a GNR, decidiu que a prova seria interrompida nos vários PACs onde nos encontrassemos.
Quem estava no Alvoco, ai ficará. Quem chegar à Torre, idem, e quem estiver em Manteigas também.
O tempo está de facto a ficar muito mau. Apesar da nossa compreensível frustração, a decisão é bem tomada. O bater de asas da mariposa originou uma borrasca das grandes e perigosas para quem está exposto aos elementos na Serra.
Assim que chegamos ao planalto anoitece. Está nevoeiro cerrado. Não se vê um palmo à frente do nariz. Quem não tiver track no relógio está tramado. Vou atrás do grupinho de 5, e eles vão chamando por mim (fico-lhes muito grato). Cruzamo-nos com atletas perdidos, feitos baratas tontas. Subitamente um GNR assoma junto a nós. Guia-nos até ao PAC da Torre.
Entramos completamente encharcados. Alguns atletas estão cobertos por mantas. Contam-nos que houve dois que entraram em hipotermia.
A prova acabou. É um anti-climax mesmo estranho.
São 19h11. 150 kms, com 7.100 m D+, em 31h48
Sempre deu para fechar o circulo.
O Rui liga-me, solícito como sempre. Ficou com o Pedro no Alvoco. Aliás, parece que foi por minutos que eu não fui retido no Alvoco. O Fernando Banca, que lá chegou apenas 20 minutos depois de mim, por lá ficou.
Quer saber de mim e diz-me que o Eduardo lhes vai dar boleia para a Penhas. Eu ainda não sei como irei sair daqui. Ele fica de me ligar quando chegar às Penhas, para verificar se necessito de boleia.
Entretanto, os atletas que estão no PAC vão sendo todos recolhidos de carro, por acompanhantes. Eu estou a ficar cheio de frio, mas tenho de esperar mais um pouco, pois os voluntários que estão a desmontar o PAC irão dar-me boleia para as Penhas.
Finalmente saimos. O nevoeiro é intenso.
Deixam-me nas Penhas em frente à meta. Sinto que estou prestes a entrar em hipotermia. Corro para dentro do Luna Hotel, o refúgio mais próximo que encontro.
Por sugestão do Rui, ligo para a Ana Melo e Orlando a pedir-lhes para me virem buscar ao Hotel. Valeu-me a boleia de algumas centenas de metros do Orlando, até à porta do Chalet. Se tivesse que percorrer o caminho à chuva, teria certamente congelado.
Banho retemperador, seguido de uma muda de roupa seca, cortesia do Orlando, pois os meus sacos estão com o Paulo Raposo.
O Rui, a Ana e o Orlando foram o meu salva-vidas nesta última peripécia. Estou-lhes muito grato.
Nunca me tinha acontecido particpar numa prova de 100 milhas que foi interrompida pela tempestade. Não deixa de ser uma aprendizagem diferente. E bem vistas as coisas, para quem já completou meia-dúzia de provas nesta distância, é muito mais interessante ter uma experiência diferente, que se destaque e deixe memórias vívidas.
A bem dizer, as provas que me marcaram mais até agora foram aquelas que tiveram mais peripécias e dificuldades para ultrapassar.
Vem-me à mente a TED Talk do Nobel Daniel Kahneman, acerca do "experiencing self" e do "remembering self".
Temos dois tipos distíntos de vivências: as que experienciamos no momento em que as vivemos, e as que experienciamos através das memórias que delas formamos.
E que memórias eu carrego comigo!
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