Insanidade nos Tempos de Covid - Estrelaçor 180K - A prova - Noctibus equitare
Link para a primeira etapa
"Vem, Noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio. Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de Infinito.
Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para o pé das árvores próximas.
Funde num campo teu todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhe todas as diferenças que de longe vejo.
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe.
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora.
Na distância subitamente impossível de percorrer."
- Álvaro de Campos
Crónica em episódios. Memórias de fulano.
Noctibus equitare
Na distância subitamente impossível de percorrer, após Vide assoma medonho o Colcurinho. São 850 metros de vigoroso desnível positivo, concentrados em 8 kms. Estradão ascedente, cai-de-costas, interminável. O famoso Cumcaralhinho, do Pedro.
Ultrapasso o Fernando Banca, que vai mais lento na subida e mais rápido na descida. Desde a Torre que me vou cruzando com ele. Como é que o homem consegue ser tão ligeiro com um corpanzil maciço daqueles é algo que me ultrapassa...
Chego ao topo. A verdade é que, neste momento, as subidas custam-me menos do que as descidas. Subir é colocar decididamente um pé acima do outro. Descer é ir em queda permanente, travando para não rebolar. Venham as subidas, livrem-me das descidas. Subir ao céu, descer aos infernos.
Ao fim de mais 10 kms chego ao Piódão. Ainda é necessário atravessar a aldeia e subir um pouco até ao PAC espaçoso. Sou recebido pela Maria Saldanha de Azevedo. É uma querida. Arranja-me a comida que lhe peço. Aqui temos sopa quente, esparguete com bolonhesa, fruta, etc. Como tudo. O estômago já se vai revoltando, mas torna-se imperioso domá-lo.
Estamos apenas 3 no PAC. Eu, o Fernando e o espanhol que o acompanha.
São agora 02h15 da madrugada. 80 kms estão percorridos. 2.630 mD+ subidos. 3.360 mD- descidos.
Estou no ponto de partida da prova dos 100K, onde correm a Cármen Ferreira, o Luís Afonso, o Paulo Raposo, a Marina Marques, a Sandra Simões, e o Teodoro Trindade. A partida deles foi cerca das 21h00. Levam 5 horas de avanço sobre nós. Calculo que se encontrem algures entre Malhada Chã e Sobral de S. Miguel. Desejo que estejam bem. Estão nos meus pensamentos.
A mulher do apito, dinâmo de energia pura. O homem da juventude eterna. O sherpa da estrela polar. A shaman conduto das energias cosmicas. A guerreira das pilhas duracell. O poço de força. Adoro-vos!
Como todos nós sou um mistério. Um misto incongruente de solitário com gregário; de individual com social. Tanto me sinto bem sozinho, como necessito do outro. Vivo bem com estas duas realidades, estas duas dinâmicas. Sou dual.
Bem, está na hora de iniciar os 100K que faltam. Começo novamente a subir. Agora são 8 kms rápidos até Malhada Chã. 8 kms sem história. Ultrapasso o Cabeço do Açor e desço até Malhada. Chego lá às 04h40 da madrugada. Estou a meio da distância. Passaram 17h42 desde o início.
O PAC é minúsculo e apenas tem líquidos. Sou recebido entusiasticamente pelo Miguel Pinho. Hidratação, uns dedos de conversa, e saio para o escuro da noite. Tenho pela frente uma bela subida até ao Pico da Cebola, a 1.400m de altitude. Para lá chegar é necessário percorrer a crista da montanha, muito exposta ao vento. Está frio, muito frio. A sensação térmica é de graus negativos. Sorrateira, cai-me em cima a hora mais fria da madrugada.
Mantenho-me apenas com a térmica, os manguitos, as perneiras, as luvas, e o impermeável. Não chove e consigo gerar calor, trotando sempre que possível.
São 18 kms até Sobral de S. Miguel, mas parecem 30. Pelas 6h30 da madrugada começo a notar uma vermelhidão promissora no horizonte. Os demónios da noite afastam-se, cansados e abatidos.
Do alto divisam-se os vales envoltos em nevoeiro, quais lagos brancos.
18 kms totalmente sozinho. Sem ver vivalma. Perco-me nos meus pensamentos. Construo a minha teoria da consciência. Teoria do eu.
Só existimos na relação. É o olhar do outro que nos mostra quem somos. O eu emerge do diálogo entre módulos separados, embutidos no nosso substrato físico. Cada módulo não tem consciência de si próprio. É necessário um coro dinâmico de vozes em diálogo para que a consciência desponte. Eu vejo-te, tu vês-me. A consciência isolada é um fenómeno impossível.
Antes do Sobral ainda passo por Giesteira. Já é de dia. A 100 metros diviso um matilha de cães dentro de uma cerca. Quando chego perto constato que não há aqui nenhum cão. São videiras. Nunca tinha tido alucinações logo a seguir à primeira noite. Há sempre um primeira vez.
Às 08h54 chego finalmente ao Sobral. Estava a ver que nunca mais. Sou recebido pela Fátima Gonçalves. O PAC tem duas cadeirinhas cá fora e não é muito abundante em alimentos. Mas dá para repousar um pouco do cansaço da noite.
Sinto que completei mais uma etapa. Emergi da noite vitorioso. Tenho 22 horas de prova no lombo. 106 kms percorridos. 4.800 mD+. 5.900 mD-. 40 minutos de atraso relativamente à previsão das 42 horas.
Doem-me os pés, os tornozelos, os joelhos, as pernas, as costas, os ombros, os braços, os pulsos, até mesmo os olhinhos. Daqui em diante serei movido a teimosia pura.
Tal como João Sem Medo, temos dois caminhos por onde escolher: o asfaltado conduzirá à felicidade e o de pedregulhos à infelicidade. No entanto a felicidade tem um preço: consentir que nos cortem a cabeça. "para não pensar, não ter opinião nem criar piolhos ou ideias perigosas".
João sem medo escolhe o caminho das pedras, mas recusa ser infeliz. Porquê? "Porque não quero!"
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