Insanidade nos Tempos de Covid - Estrelaçor 180K - A prova (e que prova!) - Calidum detegere

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"É um triunfo da vida que a memória dos velhos se perca para as coisas que não são essenciais."

- Gabriel García Márquez, in Memória de Minhas Putas Tristes


"A idade não tem realidade exceto no mundo físico. A essência de um ser humano é resistente à passagem do tempo. Nossas vidas interiores são eternas, o que significa dizer que nossos espíritos permanecem tão jovens e vigorosos como quando estávamos em pleno florescimento. Pense no amor como um estado de graça, não o meio para qualquer coisa, mas o alfa e o ômega. Um fim em si mesmo."

- Gabriel García Márquez, in O Amor nos Tempos de Cólera



Crónica em episódios. Memórias de fulano.

Calidum detegere



Telémaco ou Ulisses. O canto das sereias soa irresistivelmente feroz no ar fresco e húmido do meio-dia.

Somos chamados às nossas posições na partida, de 5 em 5, ou quantos calha, pela ordem do dorsal, se possível, e assim que entramos logo saímos, alucinados, do curro para a praça, picados pela voz do speaker no megafone que grita os nosso nomes.

"Da ganadaria RUN 4 FUN vão entrar agora dois belos exemplares! (poderia ter dito, mas não disse).

Saio resfolegando, fremente de excitação, às 11h22, partilhando a canga do Pedro Ribeiro. A 50 metros passamos à frente do Rui Faria e gritamos-lhe que se apresente no redil pois não tarda nada é a sua vez de iniciar o rodeo.

Eu e o Pedro contornamos o Lago do Viriato (nome de bom prenúncio) e encetamos a subida para a Torre, com uma vista soberba para o Covão do Ferro, do nosso lado direito.

Somos transportados pelo carinho dos amigos que compareceram na partida para nos catapultar para a Serra - Gonçalo Pais, Luísa Henriques, Paulo Raposo, Sandra Simões - e que vão surgindo aqui e ali, pelo caminho, para nos encherem a alma de calor.

Chuvisca, molha-tolos. Bravos tolos somos todos nós que aqui nos apresentamos. 

O duro granito molhado, dos grandes calhaus atapetado de verde, atira-nos com os pés para baixo. A orografia é inclinada e sobe-se com cuidado determinado. Perco-me do Pedro. Troca de canga: ele aguarda vagarosamente que o Rui entre em tandem mas eu continuo.

Ao fim dos primeiros 11 esforçados kms chego ao abastecimendo da Torre. O PAC1 é exíguo e abarrotado. Mal dá para tirar uns cubos de melão e uns fiapos de presunto antes de sair novamente para a chuva e ar fresco e carregado do início da tarde.

As provas da Associação O Mundo da Corrida tem o condão de nos fazer cruzar com inúmeros rostos conhecidos, nas hostes dos muitos voluntários que se apresentam ao serviço. Fátima Gonçalves, Miguel Pinho, Miguel Roque, entre muitas outras generosas almas que peço me perdoem não mencionar aqui.

Nos PACs (posto de abastecimento e controle), testemunhar rostos familiares abrirem-se em sinal de reconhecimento aquece mais do que a própria sopa.

Está nevoeiro cerrado e eu demoro um pouco a reorientar-me. Agora seguimos na direção de Loriga, passando por cima do dique do Covão das Quelhas, antes de virar à direita e subir para a estrada. Atravessamos a dita, contornando as Salgadeiras, e lançamo-nos na vastidão da Nave Mestra. Adoro a beleza prístina destes trilhos ancestrais. Desfilam incontidos, galopando ante meus olhos espantados. Os meus pés, desobedientes, forçam um ritmo vivaz. Espessos tufos de relva que ocultam inúmeros regueiros e covas de água, obrigam a uma navegação dificil e acrobática. 

Em plena nave ocorre um rito de passagem. É necessário atravessar uma telúrica estreita fenda para emergir do lado de lá, a 1700 m de altitude, rumo ao acolhedor regaço do Vale do Rossim. A metáfora é evidente mas irresístivel, perdoem-me.

A fome morde-me o estômago. Não como desde as 9 horas e já se aproximam as 3 da tarde. Ingiro um gel. Energia rápida. Por agora serve. Sei que junto à Barragem do Rossim não haverá qualquer PAC. Alimentos sólidos só no Sabugueiro. A edição deste ano tem destas particularidades, gentileza do Covid.

Cruzo-me com muito poucos atletas. Estamos espalhados pelo terreno, formando uma corrente esparsa que se vai estendendo por quilómetros. É uma sensação única, afianço-vos. Sinto-me parte integral de algo maior do que eu. É uma indivisa mole humana que se enraiza no passado e se projeta no futuro.

Do parque de campismo até à aldeia mais alta de Portugal, o Sabugueiro, descubro um trilho que me é desconhecido. Tenho corrido muito na Serra mas este é uma novidade para mim. Já vos disse que adoro esta Serra? 

Às 16h32 chego finalmente ao abastecimento. Tenho uma fome de urso. Este é daqueles em que se pede aos prestimosos voluntários que nos sirvam aquilo de que necessitamos. O abastecimento é fraco, mas aproveito o mais possível. Sete horas com apenas 2 géis no bucho é muito escasso. 

Estas são provas gastronómicas. Vence quem tiver o estômago forte. Correr de barriga cheia não é conducente a boas digestões. O sangue insiste em desviar-se para as pernas, ingrato! Teima em ignorar que a sua labuta também é necessária - é mesmo essencial - na fornalha central do estômago. "Coração, Cabeça e Estômago, como em Camilo e seu burlesco Silvestre da Silva. Sem energia não há movimento. Em plano energia é igual a metade da massa vezes velocidade ao quadrado. A subir há que vencer a altura e a gravidade que nos esmaga.

Agora descemos do Sabugueiro para Valezim. Até à Senhora do desterro o caminho passa por um estradão plano muito rápido. E quando não é plano é quase sempre a descer. Dá para manter ritmos generosos, acima dos 6 km/h, daqueles em que os pés matraqueiam o solo, que nos devolve, como uma vingança, a exata força exercida.

Permitam-me aqui um parêntesis. A minha prática do Ultra Trail já tem mais de uma decada. O que vou perdendo em força e velocidade vou ganhando em experiência. E a minha experiência dita que não se deve abusar na primeira metade da prova. Por outro lado, também sei que, por vezes, é necessário deixar o corpo dar vazão à sua alegria e entusiasmo. É importante ser racional e timorato, mas também é essencial juntar a essa mistura o fermento do risco e da loucura. Só assim confecionaremos um belo e equilibrado pão, amargo e doce quanto baste. Enfim, tal como ninguém quer um amante insípido, também ninguém quer uma aventura sem risco.

Aventura. Porque outra razão nos encontramos aqui? Porque vos parece que nos lançamos de cabeça nestes longos fins-de-semana sem dormir, expostos ao frio, à chuva, à dureza do terreno e ao desgaste inexorável dos quilómetros?

Por várias razões, é certo. 

Para pertencer a uma tribo: a tribo do clube; a tribo dos atletas conhecidos; a tribo mais vasta dos Trail Runners.

Para abraçar um modo de vida desejavelmente mais saudável; para perder peso; para manter o fôlego.

Para formar vivas memórias que nos acalentarão até ao fim das nossas vidas.

Mas sobretudo, e essencialmente, para experienciar o desconforto inerente à condição humana, inscrito na matriz vital dos nossos genes. Necessitamos hoje disso tanto como no tempo dos nossos ancestrais tetra-avós paleolíticos. Só nas experiênciais mais viscerais é que nos sentimos verdadeiramente vivos.

Chego a Valezim pelo anoitecer, cerca das 20h00. 45 kms estão cumpridos. Este abastecimento é muito mais composto do que os anteriores: temos direito a sopa, sandes de presunto, fruta fresca, frutos secos, etc. Aproveito para forrar o estômago abundantemente. Vou necessitar.

Um camarada que acaba de desistir naquele ponto afiança-me que, depois de Vide, a subida para o Culcurinho será das mais agressivas da prova. Assevera convictamente que é da mesma ordem de dificuldade da subida do Alvoco à Torre. Não o contradigo, mas interiormente cogito que não será possível. É concerteza um exagero involuntário de alguém que está compreensivelemente cansado.

Não me demoro e saio celere novamente para a rua. Agora tenho pela frente 17 kms até à Base de Vida de Vide. O equipamento necessário altera-se neste ponto: impermeável e frontal tornam-se essenciais para enfrentar a noite. 

De Valezim a Vide é uma pequena subida (344 mD+) seguida de uma interminável descida (1.471 mD+). A descida nunca mais acaba. Já estou farto de estradões mas cheira-me que ainda vou ter que gramar com muitos pela frente, até chegar à meta.

O treino escasso e necessariamente específico que fiz não me preparou para descer estradões intermináveis. Nem sequer aprecio esse tipo de terreno. O que eu gosto é de single-tracks que sobem e descem acentuadamente pelo meio da natureza, em que cada curva é uma surpresa à espera de acontecer, e cada pedra, cada raiz e cada tronco são únicos e diferentes. Tal como uns preferem morenas, outros louras ou mesmo ruívas, eu prefiro trilhos sinuosos, repletos da promessa de novidade a cada passo, e que é necessário abordar com inteligência destemida a fim de manter o pé firme, em movimento, sem tropeçar. Enfim, gostos... ainda bem que os há para tudo.

Às 22h09 entro na Base de Vide. Nesta aqui detenho-me mais alongadamente. Faço tudo com calma. Alimento-me bem, mas prescindo de trocar de roupa ou qualquer outra peça de equipamento. Isso ficará para mais tarde, na segunda Base de Vida, no Alvoco. É o meu habitual em provas de 100 milhas. O saco da primeira base de vida raramente é utilizado.

Previamente, preparei uma tabela detalhada, onde esquartejei a prova em quartos. Também aqui há que dividir para reinar. O método analítico tem resultados comprovados. Tal como a maior parte dos atletas, eu corro de abastecimento em abastecimento. Esse é sempre o meu horizonte mais próximo. Mas para além desse, mais curto, numa prova desta dimensão costumo definir metas intermédias. 180 Km prestam-se a ser divididos em quartos de cerca de 45 Km. No entanto, no caso do Estrelaçor Ultra Endurance, o desnível positivo está remetido sobretudo para o último quarto da prova, aumentando progressivamente ao longo de toda ela. Assim resolvi dividir a prova de acordo com a seguinte tabelinha:

 


 

Previamente tinha delineado uma estratégia e estabelecido duas previsões de progressão no terreno, uma mais conservadora (48 horas) e outra mais otimista (42 horas).

 


 

Neste momento tenho 4 minutos de avanço sobre a estimativa otimista, portanto vou muito bem. Se continuar assim demorarei 42 horas a terminar a prova.


Assim que estou pronto saio para  o escuro da rua. Qual não é a minha surpresa quando, mesmo à porta, deparo com o par de gémeos Pedro & Rui, os dois Argonautas, Castor e Pollux!!

Que alegria! Estão com muito bom ar. fico feliz por sabê-los bem e perto.

Avanço para a noite. De cada vez que paro num abastecimento arrefeço internamente. A fornalha deixa temporariamente de carburar. Torna-se necessário avivar o fogo. Acelero. O futuro está aí virgem, pronto para ser desbravado. Ainda muitas aventuras tenho pela frente. Mal sei eu as incríveis peripécias que me aguardam, pacientes, entre os esconsos da noite...



To be continued...



Primeira subida para a Torre (Pedro e Luís)


Base de Vida de Vide (foto organização)


Primeira etapa: Penhas - Vide:





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