O silêncio dos trilhos e a dúvida que fica
O silêncio dos trilhos e a dúvida que fica
O corpo fala. Nem sempre ouvimos. Muitas vezes corremos mais depressa do que devíamos, prolongamos treinos para além do razoável, acreditamos que a disciplina basta para calar a dor. Mas há momentos em que o corpo impõe silêncio — e o meu joelho direito decidiu fazê-lo de forma porventura definitiva.
Nos últimos meses, a dor deixou de ser um aviso para se tornar companhia diária. O edema não cedia, e a ressonância revelou o que, talvez, no íntimo já suspeitava: o desgaste é real, múltiplas patologias, a artrose instalada. A artroscopia retirou o menisco externo, mas também levou com ela uma parte da ilusão de que nada mudaria. Agora, resta a convalescença, a fisioterapia paciente, e a pergunta sem resposta: voltarei a correr? E se voltar, será ainda pelos trilhos que tanto me moldaram?
São quinze anos de vida. Quinze anos marcados por dezasseis maratonas de estrada e cinquenta e quatro ultras em trilhos, e incontáveis kms a treinar na estrada e sobretudo na montanha. Cada número traz consigo rostos, paisagens, dores e conquistas. Uma geografia de memórias que não se mede apenas em distância, mas em intensidade.
Agora, sentado no silêncio de quem não corre, aprendo outra forma de resistência: a de aceitar o limite. Pergunto-me se este será o fim de um capítulo ou apenas uma pausa forçada. Talvez o futuro traga caminhos diferentes — não aqueles desenhados pelas marcas no chão, mas os que se abrem dentro de nós quando percebemos que não somos eternos corredores, apenas viajantes em constante transformação.
Seja qual for a resposta, ninguém me retira os trilhos já percorridos. Estão gravados em mim como cicatrizes e como vitórias. E se a corrida acabar, fica o testemunho de que viver intensamente é, também, saber parar quando é preciso.
O que ainda permanece em aberto
Mas parar pode ser apenas uma pausa. A mesma determinação que me levou a atravessar serras e noites inteiras pode agora ser canalizada para novas formas de movimento. Se os trilhos me exigem prudência, há sempre o percurso serena da caminhada. Se a corrida longa se tornar impossível, talvez a corrida curta, feita de passos leves e conscientes, ainda me esteja reservada.
Descubro também que a água acolhe o corpo de uma forma que a terra já não permite. A natação em águas abertas, com a sua cadência tranquila, devolve-me o prazer do esforço sem dor. O ciclismo abre horizontes diferentes, faz-me sentir o vento no rosto e lembra-me que a liberdade não se mede apenas na verticalidade das montanhas, mas também na fluidez das estradas abertas.
Não sei ainda se voltarei a correr como antes. Mas sei que continuarei em movimento. Talvez não pelas mesmas rotas, talvez não com a mesma velocidade, mas sempre com a mesma vontade de avançar. E isso, no fundo, é o que importa: aprender a transformar a limitação em oportunidade, e descobrir que a esperança também tem pernas — mesmo quando já não correm como outrora.
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