Memórias do Absurdo
Numa noite de Lisboa, quente como um sopro de verão, Luís, um jovem de 17 anos, é levado às pressas para as urgências do Hospital Santa Maria. Este rapaz, com o mundo refletido nos seus olhos, exibe uma maturidade sofrida emergindo entre os traços juvenis de seu rosto. Há algo quase teatral na forma como é colocado entre duas macas, flanqueado por dois homens - um marcado por um encontro íntimo com o fogo, o outro vencido pelo asfalto em uma corrida de mota. Ambos cobertos pela máscara disforme da carne estilhaçada.
A fragilidade da condição humana permeia o ambiente carregado do hospital. No epicentro desse caos, Luís hesita, como quem lê o guião de uma tragicomédia, escolhendo interpretar o papel do humorista. O riso torna-se seu escudo, protegendo-o do medo que tenta se infiltrar insidioso em sua mente, enquanto se prepara para mais uma batalha contra um intestino rebelde, com um corpo que resiste.
O bloco operatório espera-o, a luz fria e esterilizada pintando sombras fantasmagóricas nas frias paredes brancas. O monitor cardíaco ressoa como o único percussionista de uma banda invisível, tocando um ritmo tão intenso que Luís se pergunta se o aparelho não estaria magicamente sintonizando uma estação de rock. E ele, protagonista de uma comédia absurda, pensa em pedir ao anestesista para trocar a frequência por algo mais tranquilo, talvez uma música clássica, um requiem.
Eis que o passado regressa, como um fantasma que se recusa a partir. Sete anos antes, o seu apêndice tinha declarado guerra ao seu corpo. Foram dias sem fim, divididos entre o hospital de Vila Nova de Gaia e o Santa Maria, alternando entre dor e medo, e momentos de surrealidade quase cómica. Agora, uma vez mais, Luís se encontra na fronteira entre a realidade e o absurdo, enfrentando um velho inimigo.
Uma faca o abre como a um melão maduro. Cirurgiões vasculham suas entranhas, procurando a pedra filosofal entre metros de uma giboia rebelde e perigosa.
As noites na Unidade de Cuidados Intensivos tornam-se um palco para a expressão do sofrimento humano em suas mais diversas e impressionantes formas. O passado e o presente se entrelaçam numa tapeçaria de alucinações. Um homem é consumido por gemidos incessantes, enquanto uma mulher, com voz frágil como cristal, entoa canções de esperança. As dores são como punhais afiados, a sede, uma tortura lenta. A única concessão é umedecer os lábios com uma gaze embebida em água, agora a substância mais preciosa do universo.
Na ampla enfermaria, recheada de corpos inertes, o absurdo escala novos patamares. Um paciente africano, com olhos sonhadores de liberdade, sussurra planos de fuga a Luís. Este entra na brincadeira, misturando diversão com uma solidariedade inesperada.
Luís percorre o hospital como quem caminha por um palco, onde vida e morte, alegria e dor, realidade e absurdo se entrelaçam em uma dança estranhamente bela. Assim como uma personagem de António Lobo Antunes, ele encontra riso na tragédia, esperança na desesperança, o absurdo na realidade - e acima de tudo, a inconfundível beleza da frágil condição humana.
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