EGT - Estrela Grande Trail 2019

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“Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.”
- José Saramago, Levantado do Chão
















E a magia voltou a acontecer.

Ao fim de dois anos de travessia no deserto, levei um dorsal de Trail do início até ao fim de uma prova.







Acordar… o barulho distante do despertador… o lento retorno à vida…

Ainda é noite. Abro os olhos para a escuridão. Estou deitado no sofá, meio destapado por um cobertor exíguo…

Ergo-me devagarinho. É necessário envergar a couraça de Cavaleiro Templário desta fé que move as montanhas debaixo dos meus pés: calções de licra; camisola térmica de manga curta, justa ao corpo para evitar assaduras; perneiras; manguitos; luvas sem dedos; meias; ténis kalenji, os que me caiem melhor; mochila Salomon, uma das peças de equipamento mais importantes, pois vai carregar com todo o material essencial para completar com sucesso uma travessia destas; bastões.

Estou equipado. Tomo tranquilamente um pequeno-almoço frugal, mas energético: iogurte grego; aletria; café.

Estou pronto.

Saio para o breu do exterior.

Desço cerca de um quilómetro até ao local da meta. Cheguei cedo. Alguns, poucos atletas, concentram-se junto ao pórtico. Vão chegando mais. A adrenalina do entusiasmo é palpável, cheira-se no ar fresco da madrugada. Retesam os músculos como nervosos cavalos puro-sangue antes do tiro da partida.

Sinto-me calmo. Fiz o possível para chegar até aqui. Agora estou entregue à dança entre o desgaste, a sorte, a estratégia e a boa gestão das emoções.

A minha maior preocupação são os 8 kg em excesso que carrego comigo. Tenho já uma vasta experiência de provas longas e com muito desnível, mas muito pouca experiência em carregar este excesso de barriga. Vou percorrer esse terreno desconhecido, e é aí que a estratégia e gestão emocional irão pesar mais.

Ser conservador no avanço pelo terreno. Ir devagar, a roçar os tempos de corte, mas nunca demasiado próximo para que não seja surpreendido por algum imprevisto. Gerir tanto o entusiasmo como o medo.



Parece que foi uma eternidade de meses antes: a dor da separação. O desabar de uma vida a dois. A angústia da solidão. As dúvidas acerca da capacidade para criar um novo lar. O trabalho diário para reconstruir um caminho.



São seis horas, soa a ordem de partida. Começamos imediatamente a subir. Sinto-me pesado. Carrego o lastro do meu passado, almejo as alturas de um novo futuro: sim, porque o futuro muda constantemente, escorre-nos entre os dedos mais célere do que o passado. Pretérito, presente e futuro coexistem simultaneamente, vivemos nas interceções de linhas que atravessam o espaço-tempo.

Uso todo o meu corpo para ascender: bastonadas fortes no chão, apoiado sempre em dois pontos.



Terei sido vergado pela montanha, nos idos do verão de 2015, em Chamonix? Aos 135 km ter-se-á quebrado algo frágil dentro de mim?



Sobe Luís, sobe… tens 1h45 para chegar aos 8,5Km…

Ao meu redor outros se animam. Não cesso de me maravilhar com a irmandade que se sente entre todos estes guerreiros da falange do inútil. Corremos em direção ao nada, que é onde iremos todos acabar no final. Todos temos a derrota como certa, e todos temos por certo que a única forma de redimir essa derradeira derrota, transformando-a numa esplendorosa vitória, é percorrendo o caminho de fronte erguida, coração cheio e um sorriso louco nos lábios.

Chego ao abastecimento. É o primeiro Oásis. Estou bem dentro do tempo. Todos estamos imersos neste tempo que nos sublima e transforma.

Bebo, como, respiro. De cada vez que os pulmões se enchem sinto o fremir da pele, a excitação da cavalgada.

Próxima etapa.



Dezoito anos: o nascimento da coisa mais bela do mundo. Saiu forçado do ventre de sua mãe, como se adivinhasse que o mundo era um local violento e sentisse necessidade de provar logo ali que nunca cederia sem uma rija luta. E o meu coração rasgou-se de alto abaixo, inundado pelo sentimento mais puro e cintilante que existe.



Passo pela Barragem do Rossim, um dos locais mais idílicos à face deste nosso maravilhoso planeta. Subo para o planalto da Serra. Vou ter que o percorrer até perto da Garganta de Loriga, onde nos enviam numa desfilada cega para o desconhecido da descida até ao Covão d’Ametade. Essa descida é feita sobre grandes calhaus onde não se consegue correr. Progride-se devagar e com dificuldade.



A noite anterior, um misto de animação, convívio e troca de experiências, com a família RUN 4 FUN. Todos temos pelo menos duas famílias, a da carne e a da escolha, que escolhemos e que nos escolhe. E que boa escolha esta foi. Amizades forjadas pelas dificuldades ultrapassadas em conjunto permanecem para a vida, mesmo se a pessoas perderem o contacto, a ligação mantem-se.



O abastecimento do Covão, num belíssimo parque natural. 28 Km. O meu corpo já renasceu várias vezes. As dores que tive já desapareceram e já outras as substituíram. Estou sensivelmente a um terço da aventura. A experiência segreda-me ao ouvido que apenas tenho que abraçar cada pontada, cada músculo maçado, cada ínfima sensação, reciclando-as continuamente, para que o corpo se renove e renasça em cada etapa.



2016, os 105 Km do Ultra Trail Atlas Toubkal, em Marrocos. A chegada ao abastecimento do quilómetro 60, completamente desgastado e questionando-me como poderia continuar… A enorme batata cozida que me salvou a vida. Comer, comer bem e beber sempre. Mesmo um Jedi precisa ter acesso direto à fonte da força…



A brutal subida novamente para a Garganta de Loriga… 700 mD+ bem duros e desgastantes, feitos em apenas 4 km.

A chegada ao abastecimento onde sou envolvido pelo carinho, atenção e incentivo do Rui e da Sandra, com a sua alegria e enorme generosidade. Dão ao próximo, que neste caso sou eu o feliz contemplado, o que têm de mais precioso: o seu tempo.




Cheguei às 12h20, a cerca de 40 minutos do tempo de corte. Tenho que estugar o passo. É muito arriscado.

Parto para a descida, o quilómetro vertical para Loriga. É dos percursos mais bonitos da Serra e preenche-nos de espanto pela enorme beleza e brutalidade da Natureza.

Descer pode ser tão ou mais duro do que subir, mas com o apoio dos bastões e da paisagem, vou progredindo com alacridade. 

Está imenso calor. Vou enfiando a cabeça dentro de água sempre que posso.

Loriga divisa-se lá ao fundo, como uma miragem. Após um tempo interminável chego ao estradão. Agora é um percurso rápido, a trote largo, até ao abastecimento.

Chego, sento-me. 40 km. Como sofregamente uma sopa morna. Encho-me de aletria, tomate, sal, pão com mel, enfim, tudo aquilo a que posso deitar mão. O que me vale é que tenho o estomago forte.



Grand Raid des Pyrenées, 2013. Na subida para o Pic du Midi, o flask cheio de coca-cola e a acidez no estômago que aí se instalou. Não mais. A alimentação é o mais importante. Não ceder às tentações. Ingerir apenas aquilo que é favorável.



Ganhar coragem. Sair. Agora são 11 km até ao Alvoco, sob o sol severo. É um percurso sem história. Faz-se bem. Às 15h55 estou no abastecimento. Não tenho fome, apenas uma imensa sede. Obrigo-me a ingerir algumas calorias. A subida para a Torre vai pesar. É necessário um bom aporte de energia.

Vários amigos trocam de roupa no abastecimento. Resolvo não mudar nada. O que trouxe é o que levo. Por precaução encho os dois flasks e o depósito da mochila. Levo dois litros de água comigo.



Dois anos antes: o mesmo calor, semelhante dureza, uma alma quebrada. Toda a diferença. Pela primeira vez, desde a Ultra inicial, em maio de 2010, lanço o tapete ao chão. Sinto-me destroçado. Cada bocadinho de mim lentamente arrancado pedaço a pedaço pela inclemência da Serra. Durante os próximos dois anos irei provar o sabor amargo da dúvida: serei novamente capaz, ou estarei acabado?

Uma parte significativa da minha identidade forjou-se e consolidou-se neste desporto. Ainda só tenho 9 anos disto, mas é como se fosse uma vida inteira.

Terei que percorrer o caminho das pedras. Dois anos a recuperar. Dois anos a sonhar. Dois anos de espera.



Saio do Alvoco com uma hora de avanço em relação ao tempo de corte. Não posso deixar margem para imponderáveis. A subida é simultaneamente magnífica e atroz. Se estivesse a subir para o próprio Olimpo não sentiria um maior espanto e respeito. A encosta está completamente exposta ao sol inclemente e este pesa-me sobre os ombros. Por cada meia hora de progressão exasperante de tão lenta, a uma velocidade paquidérmica, paro um minuto para recuperar as forças e observar a esplêndida paisagem. O cosmos é mesmo um local magnífico, único e precioso.

Animo-me com o pensamento de que já progredi mais do que dois anos antes. E tenho uma certeza férrea de que se chegar ao topo dentro do tempo, serei capaz de chegar ao fim da aventura. Transbordo a mente de fantasia. Cada passo é uma luta contra um dragão. Cada batimento de coração gera um novo universo.

Inexoravelmente vou subindo. Projeto o sorriso dos meus filhos na tela da minha mente. Ouço o barulho ritmado e calmante das ondas do mar distante. O ritmo carrega-me para cima.





Ao fim de quase 3 horas de contínuo e lento martelar no chão, completo os 6 km com 1200 mD+ desta etapa, e chego finalmente à Torre e ao enorme alívio do abastecimento. Se isto não é um Oásis no deserto, então não sei o que é. Todas as dúvidas se dissipam. Aqui renasço para uma nova vida. Aqui bebo de uma nova fonte. Agora estou certo de terminar. Dobrei o meu Cabo das Tormentas. Não há Adamastor que me pare. Que local tão apropriado para a renovação da minha alma: o ponto mais alto de Portugal.

Sou prestimosamente atendido pelo meu amigo Paulo Jorge. Como a sopinha da praxe. Parto com a alma renovada. Agora é descer. Troto e corro. Avanço rapidamente. Sinto-me como se tivesse agora começado a prova. Está muito mais fresco. O sol está prestes a desaparecer no horizonte.

Após 8 quilómetros chego ao abastecimento na Casa do Vale Glaciar. 67 Km. Os voluntários oferecem-me parte do seu almoço, que aceito com agrado e sem cerimónias: atum com tomate. Sabe-me que nem ginjas.

Coloco o frontal, pois o anoitecer cai rapidamente. Subimos em fila para os Poios Brancos. A subida é curta e chegamos rapidamente ao alto. Agora o terreno torna-se fácil, percorremos um estradão em trote veloz. Após cerca de 5 km chegamos ao abastecimento mais divertido onde alguma vez parei. Os voluntários têm minis a arrefecer num pequeno tanque de pedra. Já devem ir bastante adiantados nessa outra ultra da cerveja, pois o estado de hilaridade geral é evidente. Oferecem-me uma mini, que prontamente aceito. Não como nada. Basta-me esta cerveja para acalmar o meu estômago massacrado.

Saio para a noite e para a última etapa de 12 km. O tempo está dominado. Vou ter que descer até ao Poço do Inferno, mais uma apta metáfora para as curvas recentes da minha vida. E depois subir novamente uns curtos 350 mD+ para finalmente descer para o derradeiro destino.

A descida e subida inicial é feita sobre o abismo negro. A orientação não é possível. Subo e desço e volto a subir e descer. Não tenho qualquer noção de quando isto terminará. Mas sei que irá terminar bem. Na verdade, não será um términus, mas sim um novo inicio, estou certo disso.

E finalmente diviso as luzes de Manteigas ao fundo do estradão. Desço rapidamente, entro na cidade. Deparo-me com o João, que me acompanha e indica o caminho para a meta. Como fiquei feliz ver o seu rosto e logo de seguida os rostos dos meus outros companheiros!

Ana, António, Isabel, João, Luís, Marina, Nuno, Rui, Rute, Sandra. São um poema, um hino à amizade e solidariedade humanas.

Sinto-me revigorado, capaz de mover montanhas! Enquadrado por esta moldura humana, corro para a meta, que finalmente atravesso ao fim dois anos, dezoito horas e dezanove minutos.

A emoção é grande, mas vivo-a internamente, com placidez. Foi sobretudo isso que esta aventura reforçou em mim: uma reconfortante paz interior.














Uma coisa em que acredito profundamente: na vida é necessário ter muitíssima determinação para atingirmos os nossos objetivos. É fundamental acreditar, de forma sustentada, que iremos conseguir, mesmo se tenhamos muitos momentos de dúvida. E é essencial ter objetivos para que a vida valha a pena.

E temos que percorrer a vida com entusiasmo. A fantasia (imaginação) é muito, muito, muito importante. Não são as coisas em si, mas aquilo que colocamos nelas, que é fundamental. Na verdade, é tudo produto da nossa imaginação. Mesmo a forma como percecionamos a "realidade", como a vivemos, como lidamos com ela. Acredito que temos muito mais liberdade do que aquela que julgamos ter. Dentro da nossa cabeça temos a possibilidade de criar mundos.

E temos a possibilidade de conduzir as nossas emoções em lugar de nos deixarmos dominar por elas. Necessita muita aprendizagem, mas é possível.





Comentários

  1. Bonito. Bela peça literário-desportiva,como é teu costume. Parabéns e um grande abraço.

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  2. "...Corremos em direção ao nada..." nada que seja palpável... (não vou desenvolver)

    Eu cá gosto de ler os teus relatos não só pelo seguimento do raciocínio, pela ordem das coisas, como pela descoberta do que as vezes propositadamente escondes nas entrelinhas, como pela verdade nua dos factos que lhe colocas.
    Por vezes tenho que substituir as palavras do teu léxico pelas palavras do meu para enquadrar e alcançar a ideia completa.

    "Inexoravelmente" ou implacavelmente atinges-nos com toda uma carga brutal de sentimentos que precisavas libertar meu amigo.
    A Sandra comentou comigo e eu concordo.

    Um relato diferente dos passados, como provavelmente teria que ser, que reabre portas...
    Foi uma prova dura. Estive lá, vi e aprendi.
    Crias-me a imagem como que o teu pensamento tivesse dedos que se assemelham a pinças delicadas que vão meticulosamente buscar a memória que te faz erguer acima das rochas e continuar em frente.

    Parabéns pelo relato e pela prova. Estás fortíssimo.

    Quando à grupeta R4F. Sem dúvida que temos qualquer coisa de diferente esta nossa forma de "cuidarmos" uns dos outros é qualquer coisa de brutal.

    Runabraços

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  3. Muito obrigado Rui! És sempre de um enorme incentivo, fico-te muito grato! Forte abraço

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  4. Tenho andado um pouco desligada deste mundo dos blogues, mas não podia deixar de comentar este teu relato. Primeiro, vim pela curiosidade de ler sobre mais uma prova na "minha" serra e, depois, fiquei pela história. Soubeste transmitir muito bem essa vida que todos carregamos quando corremos.
    Umas vezes mais leves e outras menos... E não falo apenas do material obrigatório. :)
    Parabéns!

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    1. Muito obrigado! Foi o que eu tentei fazer. Fico feliz em saber que atingi o meu propósito :)

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  5. Excelente relato! Fizeste-me subir a serra em 10 minutos. Parabéns pela conquista e pela passagem do cabo das tormentas.

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