Andorra Ultra Trail VallNord - Ronda dels Cims 2019 - 1ª noite.
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O abastecimento de Coll de la Botella é amplo e arejado. Alimento-me bem, antes de sair novamente para o escuro da noite. É perto da meia-noite.
Durante alguns kms vou ter um percurso razoavelmente plano em que é possível trotar folgadamente.
Passo por uma alemã que se encontra inclinada à beira da estrada, a esvaziar os conteúdos do estômago. Pergunto-lhe se está tudo bem. Responde-me que sim, mas com uma voz hesitante e incerta. Espero um pouco, mas parece-me que ela vai ficar bem.
De seguida passo por outro atleta em idênticas circunstâncias.
Ter-se-á passado algo no abastecimento anterior, ou é o início da noite e dos seus terrores?
Recordo-me vivamente de ter passado por esta Collada Montaner em 2017, juntamente com o Carlos André.
É apenas um posto de controle, sem qualquer abastecimento. É a base da próxima subida de 400 mD+ até Bony de la Pica.
Coragem!
É nesta subida que se começa a agudizar um problema que eu já vinha a sentir desde o início, mas de forma moderada e suportável.
Não me vou alongar acerca deste problema em particular, dada a sua natureza embaraçosa, mas direi apenas que raramente tinha sofrido no passado deste mal e que é um problema agudizado pelo esforço em subida. E é muito doloroso. Tanto que uma pessoa se esquece completamente das suas outras dores.
A subida até Bony de la Pica foi um tormento inenarrável. Para mais eu não queria dar-me ao luxo de tomar outro anti-inflamatório enquanto não fosse estritamente essencial.
Chego à Cresta de l'Enclás. De dia teria umas vistas magníficas. De noite apenas se lobriga o vazio.
Após um enorme esforço para ignorar a dor, lá chego ao controle de Bony de la Pica (não há abastecimento), no cume do monte. São agora 01h25 da madrugada e estou em prova há 18h25 horas. Os últimos 6 km foram feitos em duas horas. Estou na posição 166.
Agora a dor irá aliviar na descida.
A próxima etapa é das mais críticas na Ronda. Vamos descer continuamente 1500 mD-. Um autêntico parte-pernas com seções muito técnicas e inclinadas e vias ferradas.
A meio da descida há uma inflexão à esquerda e obrigam-nos a subir mais 50 metros para ultrapassar um cume. Do lado de lá encontra-se a descida final para La Margineda.
Uso de toda a minha bagagem de vernáculo para insultar o Maquiavel que inventou esta subidinha.
Bem, de certa forma esta subidinha introduz uma pausa na descida, o que até não é má ideia.
No Trail Ultra Endurance, os músculos que dão de si primeiro, normalmente são os quadríceps, devido ao movimento de contração excentrico que fazemos ao travar na descida.
Os troços que devem ser melhor geridos numa prova são precisamente aqueles que são feitos a descer com forte inclinação.
Após uma descida interminavel, lá cheguei a La Margineda e à primeira base de vida, no km 75.
O abastecimento é num pavilhão desportivo.
Sou recebido à entrada pelo Armando Teixeira! Este homem está em todo o lado a dar alento aos atletas. Diz-me que ainda vou folgado relativamente ao tempo de corte.
São agora 03h37 da madrugada. Estou em prova há 20h37. Cobri 75 km. A minha média continua a ser 3,7 km/h. Os 2k das descida com 1.500 mD- foram cobertos em duas horas, nada mau. À entrada estou na 163ª posição.
O tempo de corte nesta base de vida são as 9h da manhã. Logo estou mesmo folgado. No entanto sei que não conseguirei descansar aqui, devido à adrenalina. Em 2017 fiquei deitado a olhar para o teto durante 1h40 e não consegui descansar nada. Seja como for, a necessidade de sono ainda não se começa a fazer sentir.
Recolho o saco que entreguei na partida. Decido não tomar banho. Não vale a pena uma vez que não vou descansar. Se me tivesse decidido a descansar, poderia ser que o banho ajudasse a induzir o sono, mas assim não adianta pois já de seguida irá existir uma subida que me irá fazer suar as estopinhas.
No entanto troco várias peças de roupa: a t-shirt térmica, o buff, as luvas, os manguitos e as meias. Mantenho os calções e as perneiras.
Hidrato bem os pés com vaselina, pois já me começam a doer significativamente.
Tomo novo comprimido de anti-inflamatório, pois julgo que não vou conseguir aguentar as dores que me têm acompanhado, em mais uma subida. Sei que o comprimido demora entre duas a três horas a fazer efeito, portanto ainda irei penar no inicio (seja como for a dor nunca desaparece completamente, mas fica muito mais gerível).
Para pequeno-almoço não me apetece a sopa do costume. Felizmente já tinha previsto isso e tinha previamente enfiado uma embalagem de cerelac no saco. Soube-me mesmo bem. Quando estava a juntar água ao cerelac, um fulano perguntou-me inquisitivamente, o que era aquele pó amarelado. Respondi-lhe que eram cereais. Pareceu-me ficar um pouco desiludido...
Às 04:14 saio para a rua. Estive apenas 37 minutos na base de vida. Neste momento tenho duas horas de avanço em relação ao ano passado. Agora passei para a 122ª posição. Ainda é de noite, mas está um calor abafado. Troco novamente a t-shirt termica por uma t-shirt técnica mais fresca, com o logo dos RUN 4 FUN.
Atravesso a ponte romana, para o lado de lá do rio.
Agora irá iniciar-se uma subida muitíssimo inclinada, com 600 mD+ contínuos em 4 km, a caminho de Costa Seda, se bem que em terreno pouco técnico.
Recordo-me que em 2017, eu e o André saímos para esta subida já muito desgastados. Ele devido a uma queda feia que tinha dado e lhe tinha deixado um lenho na perna. Eu devido à falta de treino e excesso de peso. Aliás, nesse ano a minha corrida na pratica terminou em La Margineda. O último troço até Coma Bella foi uma tentativa desesperada de tentar chegar ao fim. Essa tentativa foi completamente arrasada para subida demolidora.
A meio da subida começa a amanhecer. As manhãs são sempre bem vindas. Expulsam os fantasmas da noite, e permitem ver melhor o terreno que se pisa, alem de possibilitar apreciar a paisagem e distrair a mente. No entanto com o dia vem também o calor. Há um equilíbrio entre os factores positivos e negativos de correr de dia ou de noite. É o yin e o yang da corrida de Trail Ultra Endurance.
Às 08h04 chego por fim ao abastecimento de Coma Bella.
Demorei 03h50 a fazer os últimos 13 km, ou seja a uma velocidade média de 3,2 km/h. O custo da subida fez-se sentir.
De acordo com o track de 2017, já tenho 8.900 mD+ feitos em apenas 87 km, ou seja cerca de 2/3 do desnível para metade da distância.
Estou em prova há 25h04. Se continuasse ao mesmo ritmo, acabaria em 50 horas. Portanto a minha experiência diz-me que vou demorar pelo menos mais 5 horas do que essa estimativa linear.
Este ponto é o meu cabo da boa esperança. Se o dobrar, terei ultrapassado uma barreira psicológica e estarei em boas condições para conseguir chegar à Índia.
Em 2017, uma das cosias que me fez parar foi saber que apenas existia um abastecimento intermédio ate ao refúgio de Claror nos 105 Km. E que até ao km 105 não havia hipótese de abandonar a prova (pelo menos eu assim pensava; este ano verifiquei que esse era um falso fantasma: é possível abandonar a prova na zona da Naturlandia).
A partir daqui entro no desconhecido...
No princípio criou Deus o céu e a terra.
E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.
Gênesis 1:1-5
E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
E disse Deus: Haja luz; e houve luz.
E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite. E foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.
Gênesis 1:1-5
O abastecimento de Coll de la Botella é amplo e arejado. Alimento-me bem, antes de sair novamente para o escuro da noite. É perto da meia-noite.
Durante alguns kms vou ter um percurso razoavelmente plano em que é possível trotar folgadamente.
Passo por uma alemã que se encontra inclinada à beira da estrada, a esvaziar os conteúdos do estômago. Pergunto-lhe se está tudo bem. Responde-me que sim, mas com uma voz hesitante e incerta. Espero um pouco, mas parece-me que ela vai ficar bem.
De seguida passo por outro atleta em idênticas circunstâncias.
Ter-se-á passado algo no abastecimento anterior, ou é o início da noite e dos seus terrores?
Recordo-me vivamente de ter passado por esta Collada Montaner em 2017, juntamente com o Carlos André.
É apenas um posto de controle, sem qualquer abastecimento. É a base da próxima subida de 400 mD+ até Bony de la Pica.
Coragem!
É nesta subida que se começa a agudizar um problema que eu já vinha a sentir desde o início, mas de forma moderada e suportável.
Não me vou alongar acerca deste problema em particular, dada a sua natureza embaraçosa, mas direi apenas que raramente tinha sofrido no passado deste mal e que é um problema agudizado pelo esforço em subida. E é muito doloroso. Tanto que uma pessoa se esquece completamente das suas outras dores.
“Pois a natureza humana é feita de tal forma que os
sofrimentos e as dores que acontecem ao mesmo tempo não se somam inteiramente na
nossa sensibilidade, mas escondem-se, os menores atrás dos maiores, segundo uma
lei prospetiva definida.”
- Primo Levi, Se Isto é um Homem
A subida até Bony de la Pica foi um tormento inenarrável. Para mais eu não queria dar-me ao luxo de tomar outro anti-inflamatório enquanto não fosse estritamente essencial.
Chego à Cresta de l'Enclás. De dia teria umas vistas magníficas. De noite apenas se lobriga o vazio.
Após um enorme esforço para ignorar a dor, lá chego ao controle de Bony de la Pica (não há abastecimento), no cume do monte. São agora 01h25 da madrugada e estou em prova há 18h25 horas. Os últimos 6 km foram feitos em duas horas. Estou na posição 166.
Agora a dor irá aliviar na descida.
A próxima etapa é das mais críticas na Ronda. Vamos descer continuamente 1500 mD-. Um autêntico parte-pernas com seções muito técnicas e inclinadas e vias ferradas.
A meio da descida há uma inflexão à esquerda e obrigam-nos a subir mais 50 metros para ultrapassar um cume. Do lado de lá encontra-se a descida final para La Margineda.
Uso de toda a minha bagagem de vernáculo para insultar o Maquiavel que inventou esta subidinha.
Bem, de certa forma esta subidinha introduz uma pausa na descida, o que até não é má ideia.
No Trail Ultra Endurance, os músculos que dão de si primeiro, normalmente são os quadríceps, devido ao movimento de contração excentrico que fazemos ao travar na descida.
Os troços que devem ser melhor geridos numa prova são precisamente aqueles que são feitos a descer com forte inclinação.
Após uma descida interminavel, lá cheguei a La Margineda e à primeira base de vida, no km 75.
O abastecimento é num pavilhão desportivo.
Sou recebido à entrada pelo Armando Teixeira! Este homem está em todo o lado a dar alento aos atletas. Diz-me que ainda vou folgado relativamente ao tempo de corte.
São agora 03h37 da madrugada. Estou em prova há 20h37. Cobri 75 km. A minha média continua a ser 3,7 km/h. Os 2k das descida com 1.500 mD- foram cobertos em duas horas, nada mau. À entrada estou na 163ª posição.
O tempo de corte nesta base de vida são as 9h da manhã. Logo estou mesmo folgado. No entanto sei que não conseguirei descansar aqui, devido à adrenalina. Em 2017 fiquei deitado a olhar para o teto durante 1h40 e não consegui descansar nada. Seja como for, a necessidade de sono ainda não se começa a fazer sentir.
Recolho o saco que entreguei na partida. Decido não tomar banho. Não vale a pena uma vez que não vou descansar. Se me tivesse decidido a descansar, poderia ser que o banho ajudasse a induzir o sono, mas assim não adianta pois já de seguida irá existir uma subida que me irá fazer suar as estopinhas.
No entanto troco várias peças de roupa: a t-shirt térmica, o buff, as luvas, os manguitos e as meias. Mantenho os calções e as perneiras.
Hidrato bem os pés com vaselina, pois já me começam a doer significativamente.
Tomo novo comprimido de anti-inflamatório, pois julgo que não vou conseguir aguentar as dores que me têm acompanhado, em mais uma subida. Sei que o comprimido demora entre duas a três horas a fazer efeito, portanto ainda irei penar no inicio (seja como for a dor nunca desaparece completamente, mas fica muito mais gerível).
Para pequeno-almoço não me apetece a sopa do costume. Felizmente já tinha previsto isso e tinha previamente enfiado uma embalagem de cerelac no saco. Soube-me mesmo bem. Quando estava a juntar água ao cerelac, um fulano perguntou-me inquisitivamente, o que era aquele pó amarelado. Respondi-lhe que eram cereais. Pareceu-me ficar um pouco desiludido...
Às 04:14 saio para a rua. Estive apenas 37 minutos na base de vida. Neste momento tenho duas horas de avanço em relação ao ano passado. Agora passei para a 122ª posição. Ainda é de noite, mas está um calor abafado. Troco novamente a t-shirt termica por uma t-shirt técnica mais fresca, com o logo dos RUN 4 FUN.
Atravesso a ponte romana, para o lado de lá do rio.
Agora irá iniciar-se uma subida muitíssimo inclinada, com 600 mD+ contínuos em 4 km, a caminho de Costa Seda, se bem que em terreno pouco técnico.
Recordo-me que em 2017, eu e o André saímos para esta subida já muito desgastados. Ele devido a uma queda feia que tinha dado e lhe tinha deixado um lenho na perna. Eu devido à falta de treino e excesso de peso. Aliás, nesse ano a minha corrida na pratica terminou em La Margineda. O último troço até Coma Bella foi uma tentativa desesperada de tentar chegar ao fim. Essa tentativa foi completamente arrasada para subida demolidora.
A meio da subida começa a amanhecer. As manhãs são sempre bem vindas. Expulsam os fantasmas da noite, e permitem ver melhor o terreno que se pisa, alem de possibilitar apreciar a paisagem e distrair a mente. No entanto com o dia vem também o calor. Há um equilíbrio entre os factores positivos e negativos de correr de dia ou de noite. É o yin e o yang da corrida de Trail Ultra Endurance.
Às 08h04 chego por fim ao abastecimento de Coma Bella.
Demorei 03h50 a fazer os últimos 13 km, ou seja a uma velocidade média de 3,2 km/h. O custo da subida fez-se sentir.
De acordo com o track de 2017, já tenho 8.900 mD+ feitos em apenas 87 km, ou seja cerca de 2/3 do desnível para metade da distância.
Estou em prova há 25h04. Se continuasse ao mesmo ritmo, acabaria em 50 horas. Portanto a minha experiência diz-me que vou demorar pelo menos mais 5 horas do que essa estimativa linear.
Este ponto é o meu cabo da boa esperança. Se o dobrar, terei ultrapassado uma barreira psicológica e estarei em boas condições para conseguir chegar à Índia.
Em 2017, uma das cosias que me fez parar foi saber que apenas existia um abastecimento intermédio ate ao refúgio de Claror nos 105 Km. E que até ao km 105 não havia hipótese de abandonar a prova (pelo menos eu assim pensava; este ano verifiquei que esse era um falso fantasma: é possível abandonar a prova na zona da Naturlandia).
A partir daqui entro no desconhecido...
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