Enapália

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"Faz agora 30 anos que foi lançado Enapália, uma verdadeira pedrada no charco. Um disco que veio abalar fundações, inquietar consciências e espalhar o evangelho da libertinagem. Passado este tempo todo, permanece intacto no seu estatuto de obra-prima obscura que toda a gente tem medo de dizer que admira.

Apesar de ter saído há três décadas, a semente foi lançada quase dez anos antes disso. A origem dos Ena Pá 2000 foi plantada no início dos anos 80 com a criação do movimento Homeostética. No início do curso na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, um grupo de 6 artistas decidiu formar um colectivo artístico pluridisciplinar, absolutamente disruptivo, herdeiro dos vanguardismos modernistas de início do século XX, com afinidades ao Dadaísmo e seu amor pelo absurdo. Um movimento altamente produtivo – com produção artística bastante extensa e intensa entre 1982 e 86 – mas que ficou sempre nas camadas mais ocultas da cena artística portuguesa. Os Homeostéticos focaram-se essencialmente na pintura mas os seus tentáculos também produziram inúmeros manifestos, filmes, fotografias e, a dada altura, nasceu o braço musical do movimento. De seu nome Ena Pá 2000.

O jovem artista Manuel João Vieira queria que esta fosse uma banda “absolutamente atrasada mental”, para fazer a pior música possível, usando só um ou dois acordes e com letras idiotas. Em grande medida, este objectivo fracassou. Por isso é que, passados trinta anos, ainda ouvimos e ainda falamos de Ena Pá 2000.

Para começar, falhou o objectivo da pior música possível. Todos instrumentistas dotados, os Ena Pá desde sempre fizeram músicas bastante completas e – imagine-se – com melodias lindíssimas. Quanto às letras idiotas… a doutrina diverge. Há quem se fique por considerar apenas um chorrilho de patetices, mas também há quem consiga encontrar algum sentido, por baixo das várias camadas de nonsense e rimas forçadas.

Depois, falhou a intenção de ser só uma extensão musical da Homeostética, um grupo para dar concertos a acompanhar as exposições do colectivo. Graças a uma mão cheia de canções que rapidamente se tornaram virais (antes de haver sequer esta definição), os Ena Pá cresceram muito para além da expectativa inicial dos seus criadores. Para gente nascida nos anos 80 e um pouco antes, poucos serão aqueles que não conhecem “Sexo na Banheira”, “És Cruel” ou “Marilú”. E assim começou uma das bandas portuguesas de maior longevidade ininterrupta.

Apesar de terem começado – e se manterem – como um grupo assumidamente de paródia, os Ena Pá usam esse estilo pândego ao serviço de desígnios maiores. Através da paródia e patetice distinguem-se logo dos seus pares e há muito quem não os leve a sério, mas usam a ironia como alavanca para a provocação – e o que é a arte se não provocação? E mais ainda na altura em que saiu este álbum. No início dos anos 90, Portugal estava num estado mental meio caótico, ainda havia muito quem estivesse à espera de Abril, outros andavam a comprar Range Rovers com os dinheiros da CEE, onde tínhamos entrado recentemente. O panorama musical era sofrível mas acabava de nascer o CCB (que, aliás, é a paisagem da capa deste disco). Enapália saiu com estrondo, fez tremer as mentes dos homens de gravata, deu algumas cócegas nos joelhos das mulheres mais desempoeiradas, pôs uma geração inteira a cantar hinos marcantes (como os já citados “És Cruel” ou “Sexo na Banheira) e deixou roídas de inveja dezenas de bandas que estavam a começar e a tentar entrar no circuito mas que ficaram para sempre a anos-luz: da destreza composicional dos Ena Pá e da rapidez com que arrebataram os corações de quem ouvia, pela primeira vez, uma coisa tão descabida mas ao mesmo tempo tão calorosa que parecia familiar.

Musicalmente, os Ena Pá praticam precisamente as premissas da Homeostética – não há uma estética estilística assumida e qualquer objecto artístico pode – e deve – ser absorvido e reciclado. Então temos, em 16 canções, vários géneros musicais que vão do country à valsa, do pop-rock ao quase ska, do surf-rock à música africana, mas apesar disso, acaba por soar tudo coerentemente bem, talvez por causa da voz de Manuel João Vieira. É isso que confere às canções uma certa unidade, o cimento que cola as várias peças e permite construir castelo indestrutível. E este é um ponto chave na equação. Manuel João foi abençoado com uma voz espantosa de barítono versátil e seria um desperdício se não tivesse sido cantor. Depois há a persona de Manel João, com os seus múltiplos alter egos, a sua presença imponente e carismática, a sua pose teatral e toda a aura e alma que confere aos Ena Pá.

Quanto às letras, houve desde sempre um preconceito contra a banda, toda a gente os acusa de serem ordinários que só falam de sexo e dizem palavrões. Pois bem, em Enapália 2000, não há um único – UM ÚNICO – palavrão. Há algumas canções que gravitam em torno da prática do coito, há uma aproximação mais directa a uma ordinarice (“Marilú deixa-me ir-te ao cu” não é propriamente uma expressão que diríamos num almoço em casa dos sogros, mas também não é nada de muito chocante numa canção), mas não há uma única caralhada ou filha da putice. Isso estaria guardado para o disco seguinte e aí sim, tiram a barriga de misérias. Mas em Enapália 2000, a linguagem é politicamente incorrecta sem nunca chegar à brejeirice, é por vezes absurda e abstracta, ora com rimas demasiado básicas ora com rimas de que ninguém se lembraria, mas sem vestígios de parolice nem de preguiça literária – quando quer aparvalhar, vai até ao fundo, mas quando quer ser crítico mordaz, Manuel João Vieira é certeiro.

Só que as letras das canções são a primeira – e muitas vezes a única – coisa a que os ouvintes prestam atenção. E no caso de Enapália 2000, as letras impediram as canções de tocar muito na rádio ou ter outra exposição pública em horários decentes. Isso também ajudou a fortificar o mito do Enapálismo, uma coisa meio proibida, que os miúdos tinham vergonha de dizer aos pais que ouviam, mas que consumiam sofregamente, em cassetes gravadas e repassadas no recreio da escola e, ainda hoje, encontramos quem saiba estas canções todas na ponta da língua.

Preconceitos e paródias à parte, os Ena Pá 2000 são uma banda muito mais importante do que a patetice de que se revestem faz parecer. Marcaram indiscutivelmente a música portuguesa, principalmente os primeiros discos, lançados nos anos 90. Com as actuações nas festas académicas, tornaram-se um fenómeno nacional, mesmo sem exposição nos meios de comunicação mainstream. E passados trinta anos do álbum de estreia, continuam por aí, com mais concertos e menos discos, mas estão vivos e estão presentes. No debate sobre qual o melhor álbum dos Ena Pá, há quem prefira a epopeia de 1994 És Muita Linda, há quem reconheça em Opus Gay um primor criativo acima dos restantes, mas…não há amor como o primeiro! Por isso, mesmo que os outros tenham mais técnica ou outros encantos, Enapália 2000 será sempre o disco mais marcante e mais apaixonante dos Ena Pá 2000."

Fonte; Duarte Pinto Coelho







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