Um mundo de histórias que começam e não acabam - II
"Vivemos num mundo de histórias que começam e não acabam"
- Italo Calvino
Seis inícios possíveis
1
Numa Lisboa que poderia ser tantas outras cidades, onde cada beco e avenida se entrelaçam em infinitas possibilidades, X, com dezassete anos feitos, vê-se diante da entrada do Hospital Santa Maria. Não é apenas um hospital, mas um universo de corredores que se bifurcam, de destinos que se cruzam e de histórias que se sobrepõem em camadas quase invisíveis.
Nos olhos de X cintilam não apenas um, mas múltiplos mundos, cada qual com as suas próprias realidades, enquanto os traços juvenis se desdobram em mil maturidades simultâneas. Ao seu lado, dois homens que poderiam ser tantos outros: um, com a sua história escrita pelo fogo; o outro, por quem o asfalto dançou. Em qual destas narrativas X existe de verdade? Em todas? Em nenhuma?
No epicentro deste labirinto de realidades, X sorri, mas não é apenas um sorriso — são vários. Ele compreende o jogo das tragicomédias, desempenha papéis em histórias que se revelam e recuam, tecendo e retecendo universos. O seu humor multifacetado faz de escudo, adaptando-se às inúmeras dimensões do medo.
Ao aproximar-se do bloco operatório, as lâmpadas não só iluminam, mas também projectam sombras que pintam mundos paralelos nas paredes. O monitor cardíaco, com o seu ritmo palpável, faz ressoar múltiplas melodias, em variados géneros e compassos, como ecos de universos sonoros.
O passado — esse emaranhado de linhas temporais — regressa não como um fantasma singular, mas como múltiplos espectros. O apêndice rebelde de X, em Vila Nova de Gaia, não foi apenas uma batalha, mas infinitas, em cenários que se multiplicam e se transfiguram.
Nas noites da Unidade de Cuidados Intensivos, a humanidade desdobra-se em incontáveis performances. Vozes, risos e lamúrias entrelaçam-se numa sinfonia, e X, em cada uma das suas versões, reencontra a ironia e a beleza do humano.
Porém, mesmo em universos de possibilidades infinitas, algumas histórias destacam-se: como a do paciente africano, cujos olhos transportam sonhos que atravessam dimensões, sugerindo fugas simultaneamente reais e imaginárias.
Por cada corredor, em cada sala, X move-se na fronteira entre realidade e ficção, como se habitasse todas e nenhuma das narrativas. E, à maneira de Italo Calvino, a história não se confina a um fio condutor, mas compõe-se como um mosaico intrincado de possibilidades, onde cada escolha, cada pormenor, se ramifica em infinitos universos.
2
Numa noite que se suspende entre os becos e as avenidas de uma Lisboa tórrida, murmurando segredos à cidade, X, prestes a deixar para trás a inocência dos seus dezassete anos, adentra o Hospital Santa Maria. Nos seus olhos, espelhos do mundo, viceja uma maturidade irrompida do que ainda sobra da sua meninice.
Há ali algo de encenado, uma certa teatralidade, no modo como se encontra entre dois destinos marcados pelo acaso: um homem tatuado pelas chamas, outro que selou um pacto com o asfalto numa dança de motas. E, no meio dessa tragédia composta, X solta um riso que bebe nas nascentes das tragicomédias, tomando para si o papel de humorista. Faz do humor um escudo, uma barreira contra o medo que espreita, enquanto se prepara para enfrentar um intestino em rebelião.
O bloco operatório aguarda-o, lâmpadas frias e esterilizadas a projectarem silhuetas fantasmagóricas nas paredes. O monitor cardíaco, solista de uma orquestra silenciosa, liberta uma melodia tão intensa que X se pergunta se não lhe chega aos ouvidos um rock desenfreado. Em meio a tudo isto, parece ouvir o eco do passado, um fantasma teimoso que o recorda de um apêndice renegado que, sete anos antes, em Vila Nova de Gaia, erguera bandeira contra o próprio corpo.
A Unidade de Cuidados Intensivos transforma-se num palco iluminado, revelando o sofrimento nas suas variações mais insólitas. Um homem dissolve-se em gemidos, enquanto uma mulher, frágil como cristal, entoa hinos de esperança. E X, seguindo o compasso dessas vozes, sorri para si mesmo, descobrindo a ironia de existir.
Na enfermaria, o absurdo atinge proporções colossais. Um paciente africano, cujos olhos guardam sonetos de liberdade, murmura projectos de fuga. E X, numa estranha solidariedade, participa no jogo onde o riso se entrelaça com uma união imprevista.
Assim, X percorre o hospital como se desfilasse por palcos literários, onde vida e morte, riso e dor, verdade e absurdo dançam numa coreografia tão mágica quanto imprevisível. À semelhança de Lobo Antunes, descobre a beleza paradoxal da condição humana, em que a tragédia se veste de comédia, e a desesperança se despe para deixar entrever a esperança.
3
Lisboa, essa cidade-palco, permanece suspensa entre o real e o ilusório. E, na entrada do Hospital Santa Maria, erige-se o cenário de uma obra ainda por escrever. X, jovem às portas da idade adulta, não é apenas um actor, mas uma personagem que procura o seu autor, tentando perceber qual o seu papel neste enredo.
Os seus olhos, mais do que janelas da alma, são espelhos de uma realidade fragmentada, a questionarem incessantemente o que é autêntico e o que será mera representação. Ao seu lado, dois homens — seriam eles figurantes ou protagonistas das suas próprias histórias? Um marcado pelo fogo, o outro pelo asfalto; as suas narrativas entrelaçam-se e confundem-se, como num guião inacabado.
X sorri — mas será um sorriso genuíno ou ensaiado? Enreda-se numa tragicomédia existencial, onde o humor serve tanto de protecção quanto de provocação sobre a honestidade dos sentimentos.
À medida que se aproxima do bloco operatório, a luz — ao invés de esclarecer — parece ofuscar ainda mais a linha entre a realidade e a encenação. O bip do monitor cardíaco não atesta apenas a vida: actua como um metrónomo, marcando o ritmo de uma peça que se desenha em aberto.
O passado de X, a velha pugna contra o apêndice insubmisso em Vila Nova de Gaia, ressurge não só como memória, mas como uma cena em busca de reencenação, um eco de um acto sem verdadeiro desfecho.
Na Unidade de Cuidados Intensivos, a humanidade gira em torno de dores e ânsias: sussurros, risos, lamúrias — autênticos ou simples performance?
E o paciente africano, cujo olhar faz cintilar sonhos de liberdade — será um símbolo emancipatório ou outra personagem perdida, também ela à procura de sentido? Ele e X parecem cúmplices, mas igualmente reféns de um guião que se reescreve a cada instante.
Num universo ao estilo de Pirandello, onde a realidade e a ficção se desafiam, X avança pelo hospital — ou será pelo palco? —, perguntando-se sem cessar: Quem sou eu nesta história? E afinal, quem assina este drama em que me encontro?
4
Na cidade simultaneamente sombria e radiante que é Lisboa, entre memórias do passado e anseios de futuro, X surge à porta do Hospital Santa Maria. É mais do que uma simples entrada: é uma soleira que carrega o peso de mil histórias, de vidas que se tocam e destinos que se alteram. Um lugar-limite entre a fragilidade humana e a esperança de salvação.
O olhar de X é profundo, quase geológico, evidenciando camadas de experiência e introspecção. Nele espelha-se uma humanidade continuamente em busca de significado perante o caos. Ao seu lado, dois homens marcados não por palavras, mas por cicatrizes: um queimado pelo fogo, o outro pelas agruras do asfalto.
O sorriso de X, neste cenário, não é irónico, mas de resistência — uma afronta ao medo que rasteja pelos recantos mais sombrios da mente. A sua batalha, contra um intestino rebelde, não se limita ao corpo: adquire uma dimensão existencial.
No bloco operatório, sob a luz fria e impessoal, X confronta a dualidade da vida: a promessa de cura e a sombra do fracasso. O monitor cardíaco, ao compasso constante, lembra a precaridade de tudo quanto vive.
A recordação do passado, a luta entre o seu corpo e si próprio em Vila Nova de Gaia, emerge agora não como saudade, mas como reflexão sobre a efemeridade da vida. O medo e a dor surgem intercalados por momentos de lucidez sobre o absurdo de ser humano.
Na Unidade de Cuidados Intensivos, as histórias humanas entretecem-se como fios de um tecido denso. Vozes, choros e preces sublinham a tenacidade de quem se agarra à vida em cada batida do coração.
O paciente africano, cujo olhar conta sonhos inquebráveis, é mais do que um mero companheiro de enfermaria: revela a X um espelho da sua própria busca por sentido.
Com a clareza reflexiva de Primo Levi, X transforma a estada no hospital numa meditação acerca da condição humana, explorando a urgência de não só curar o corpo, mas também recompor a alma, num esforço para compreender a fragilidade e a persistência de estarmos vivos.
5
Na fervilhante tessitura de Lisboa, onde histórias antigas e actuais se mesclam, e o mágico e o comum se confundem, X, um jovem de olhar aceso, entra no Hospital Santa Maria. Este lugar, mais do que um edifício, é um cruzamento de destinos, um labirinto de histórias, uma nascente de milagres e infortúnios.
Nos olhos de X, profundos como os velhos poços da cidade, habitam mundos que relatam gerações. Ao ser posto entre dois homens — um marcado pelo fogo, o outro por um abraço cruel do asfalto —, X sente-se enredado num cosmos de histórias que ora convergem, ora divergem.
Em meio ao caos palpável, X sorri, mas não é um sorriso vulgar. É um sorriso que revela heranças, fábulas transmitidas ao longo de gerações, um sorriso que desvenda o humor escondido nos cruzamentos da vida e da morte, do fado e da liberdade de escolha.
No bloco operatório, onde as lâmpadas brancas lançam sombras reveladoras, o monitor cardíaco evoca canções antigas, lembrando X de tambores esquecidos. E esse ritmo fá-lo interrogar-se, meio em pânico, meio em troça, se não escuta ecos de lendas musicais ancestrais.
Eis senão quando, como num sopro de realismo mágico, o passado de X em Vila Nova de Gaia desperta. Aquele pequeno traidor — o apêndice —, não apenas um órgão, mas uma entidade com relevância própria, reivindica novamente a sua narrativa. E, neste Hospital, as fronteiras entre o que foi, o que é e o que poderia ter sido tornam-se fluidas.
As noites na Unidade de Cuidados Intensivos adquirem contornos oníricos. Sons, cores e sonhos entrelaçam-se, enquanto um homem entoa cânticos antigos e uma mulher, frágil mas forte, canta esperanças antigas como se fossem hinos de um povo mítico.
Então, no meandro do hospital, surge um paciente africano, cujos olhos espelham desertos e céus estrelados. Ao seu lado, X tece narrativas, num jogo que combina o real e o imaginário.
À maneira de Rushdie, a epopeia de X pelo Hospital Santa Maria converte-se numa narrativa sobre identidade, destino e as muitas camadas da realidade. No centro de tudo, permanece a procura perpétua da verdade que se esconde entre o vivido e o contado.
6
Em uma Lisboa que tanto pode ser a que conhecemos como outra, perdida nas prateleiras infinitas de uma biblioteca universal, X encontra-se ante o Hospital Santa Maria. Mas não é um hospital banal: é um labirinto de corredores sem fim, onde cada porta revela uma realidade distinta, cada enfermaria, um universo fechado em si.
Nos olhos de X, profundos como os labirintos borgeanos, habitam mapas e espelhos da cidade. Posto entre dois homens — um queimado por chamas que poderiam ser míticas, o outro com cicatrizes que contam a tragédia de um embate furioso com o destino —, X compreende que não está apenas num hospital, mas num ponto de convergência de infinitas histórias, onde tempo e espaço se enredam de forma inescrutável.
A sua gargalhada inesperada é a de quem reconhece a vastidão infinita, a interconexão entre todos os acontecimentos e a ironia de estar aprisionado num momento que se perpetua. O bloco operatório, com a sua luz fria e esterilizada, não é somente um local de cura, mas um portal para realidades paralelas, onde cada instrumento carrega a sua própria odisseia.
Para X, o bater do monitor cardíaco não só atesta a vida: lembra os tambores que ecoam nas galerias da Biblioteca de Babel, recordando a multiplicidade incontável do universo.
E então, das profundezas da sua memória, o passado regressa — mas não um único, e sim incontáveis passados possíveis, onde a aparente inflamação de um apêndice se transforma numa viagem pelos corredores do tempo.
A Unidade de Cuidados Intensivos converte-se num salão de destinos, onde cada clamor, cada prece, ecoa num sem-fim de ramificações. O paciente africano, de olhos que abrem portais para terras remotas, partilha com X enigmas, parábolas e labirintos de significado.
Nesta narrativa ao estilo de Borges, o Hospital Santa Maria é um microcosmo da vastidão universal, um local onde cada pormenor contém o infinito. E X, qual viajante perdido num labirinto de espelhos, tenta decifrar o mistério insondável da existência.
Continuações imaginárias
7
Numa manhã chuvosa, os corredores do Hospital Santa Maria parecem alongar-se e contorcer-se como seres vivos, enquanto um aroma a flores marinhas se insinua pelos cantos. A chuva traz consigo murmúrios de antepassados, e as paredes, antes brancas e assépticas, parecem palpitar com histórias por contar. É como se o hospital tivesse sido transportado para Macondo, e cada pessoa ali dentro fosse tocada por uma forma de magia suave mas irresistível.
X, já familiarizado com o realismo mágico que o cerca, descobre que os seus passos o conduzem não apenas pelos corredores, mas também através das vidas e memórias dos que ali habitam. Ao passar por uma enfermaria, depara-se com uma mulher idosa, de longos cabelos prateados que flutuam, a tecer histórias com os dedos enquanto entoa canções há muito esquecidas.
Ao aproximar-se de uma janela, X repara numa borboleta amarela que, de forma surpreendente, lhe parece familiar. Ela dança pelo ar e pousa delicadamente na sua mão, fazendo-o sentir um turbilhão de emoções — amor, perda, esperança — tudo emanado da pequena criatura.
O paciente africano, cujos olhos antes se mostravam como portais para horizontes distantes, agora emite um brilho dourado. Partilha com X um segredo: na sua terra, circula uma lenda sobre um hospital que não apenas cura corpos, mas também almas, onde passado, presente e futuro são meros véus. Diz-se que quem ali entra, e é tocado pela sua magia, jamais volta a ser o mesmo.
À medida que os dias se fundem nas noites e estas regressam a novos dias, o tempo no Hospital Santa Maria parece distorcer-se. Pacientes que pareciam sem esperança recobram a saúde subitamente; enfermeiros e médicos, outrora cépticos, contam histórias de milagres e coincidências inexplicáveis.
Para X, contudo, a maior revelação é a sua transformação pessoal. O hospital, imerso numa magia que não se pode negar, mostra-lhe que a cura transcende medicamentos e cirurgias, e se funda na percepção e na aceitação do maravilhoso e do trágico que compõem a trama da vida.
Por fim, num crepúsculo dourado, X sai do Hospital Santa Maria não só liberto da dor física, mas com a alma renascida e plena de assombro. Leva consigo as histórias, os enigmas e a magia de um lugar onde o real e o fantástico coexistem — um lugar que só poderia ter sido tocado pela mão de Gabriel García Márquez.
8
O Hospital Santa Maria, visto pelos olhos detalhistas de Thomas Mann, transforma-se num cenário europeu carregado, reflectindo o peso histórico e cultural que paira sobre o Velho Continente. Aquilo que antes pulsava de encantamento revela agora a melancolia do tempo e a sombra implacável do destino humano.
X adensa-se numa espiral de introspecção. Os corredores, longos e gélidos, parecem estender-se infinitamente, lembrando-lhe que a morte não está longe e que o passar das horas é inexorável. Cada passo reflecte o eco de gerações passadas e as eternas inquietações sobre o sentido da existência.
A mulher de cabelos prateados, antes fiandeira de histórias, converte-se agora numa alegoria do passar do tempo. O seu canto é carregado de memórias de amores idos, de dias perdidos e do declínio inevitável. O paciente africano, outrora radiante de uma energia misteriosa, exibe agora um peso que fala de exílios, colonialismo e a difícil procura de identidade num mundo volúvel.
X interroga-se se a sua doença é estritamente física ou sintoma de um mal-estar espiritual. Em conversas profundas com os médicos, questiona a dualidade vida e morte, corpo e alma, indivíduo e colectividade.
Numa noite particularmente fria e silenciosa, X encontra-se com um médico idoso, cujos olhos cansados e mãos trémulas parecem encarnar o próprio tempo. Este médico, na sabedoria amadurecida ao longo de décadas, fala-lhe sobre a transitoriedade de tudo e a busca pela verdade última. As suas palavras, cansadas mas lúcidas, oferecem a X uma janela para os mistérios da condição humana.
Sob a penumbra de Thomas Mann, a passagem de X pelo hospital torna-se uma jornada de auto-descoberta, onde cada instante relembra a precaridade e a profundidade da vida. E quando finalmente deixa o Hospital Santa Maria, não o faz apenas como um convalescente restabelecido, mas como alguém que enfrentou os abismos da alma e emergiu com uma compreensão mais densa de si mesmo e do mundo.
9
Nos corredores do Hospital Santa Maria, irrompe um nevoeiro estranho e cerrado, cobrindo as paredes brancas de um véu de irrealidade. Entre a bruma, surgem figuras caricatas e sombrias, transformando o ambiente clínico num palco de absurdos e acontecimentos sobrenaturais.
X, ainda agitado pelas reflexões existenciais que carrega, depara-se agora com uma realidade ainda mais delirante. Aparece-lhe um médico de olhar felino, vestido com um casaco negro comprido, que se identifica como Dr. Woland. Atrás dele, um gato preto enorme, fumando cachimbo e rindo com escárnio, observa-o.
O Dr. Woland propõe a X um pacto: a cura definitiva do seu mal em troca de uma simples incumbência — encenar um espectáculo no teatro do hospital, revelando a hipocrisia e as fraquezas dos lisboetas. X, embora inseguro, sente-se tentado pela promessa de salvação e aceita.
Durante os ensaios, o ambiente do hospital fica ainda mais caótico. O paciente africano, que antes irradiava lucidez, agora dança em movimentos frenéticos sob músicas distorcidas que parecem vir de outro mundo. A mulher de cabelos prateados vaticina o futuro com rigor assustador, enquanto o gato preto cria desacatos, transfigurando médicos em estátuas e enfermeiras em pombas.
Chega a noite do espectáculo e o teatro do hospital enche-se de lisboetas curiosos. As cortinas erguem-se para uma performance em que o real e o fantástico colidem. Dr. Woland, como mestre de cerimónias, apresenta actos que ridicularizam e expõem as ilusões e as falhas humanas, num registo entre o grotesco e o hilariante, desvendando a ambiguidade da nossa condição mortal.
No final, com o público estupefacto, X é chamado ao palco. Dr. Woland, num último sorriso enigmático, declara-o curado e desaparece, deixando o gato preto que lança a X um derradeiro olhar sarcástico antes de se esvair numa nuvem de fumo.
Retomada a aparente normalidade, X, enfim são, parte com a inquieta certeza de ter assistido a uma espécie de sabbat sobrenatural — no melhor estilo de Bulgákov —, e de ter aprendido que, sob a realidade quotidiana, se oculta sempre um véu de loucura e surrealismo.
10
No Hospital Santa Maria, envolto pela negrura da noite lisboeta, X vê-se enredado na tragédia e comédia humanas, por corredores que ressoam com ecos de um passado esquecido.
— “Bom Dr. Álvaro, porque sussurram estes muros histórias de outrora?” — questiona X, com o peito pesado de inquietude.
O Dr. Álvaro, com um olhar arguto, responde:
— “Nestas paredes jazem as almas dos que por aqui passaram, cada uma com um relato de amor, de perda e do ténue bailar da existência.”
Qual Hamlet jovem, X sente o fardo do ser, a agonia de escolher, a impossibilidade de fugir ao seu destino. “Ser ou não ser neste labirinto de memórias e realidades?” murmura ele.
— “A vida não passa de uma sombra que anda, um pobre actor que se pavoneia e se inquieta por uma hora no palco,”devolve Dr. Álvaro, “só que, neste hospital, a peça ganha vida própria, em que cada paciente, cada médico, cada espírito é simultaneamente actor e espectador.”
Neste instante de revelação, surgem figuras do passado de X, vestidas como num teatro renascentista, vozes a entoarem coros trágicos. A mãe, o primeiro amor, o avô — todos cantam baladas de afecto e perda, guiando X pelos recantos da sua própria alma.
E, quando a noite se liberta ao nascer do dia, X, agora transformado, exclama:
— “Ainda que pareça loucura, encontro aí um propósito. Vou enfrentar o meu passado, os meus medos, e caminhar para o amanhã, pois o mundo é um palco, e eu não passo de um actor na grande peça da vida.”
Assim, no sossego de uma Lisboa a dormir, o Hospital Santa Maria converte-se num teatro vivo onde a comédia e a tragédia da condição humana se encenam com fervor, à maneira de Shakespeare.
11
Pelos corredores labirínticos do Hospital Santa Maria, X sente-se como um capitão a navegar mares desconhecidos, possivelmente em busca de uma baleia branca que simboliza a sua angústia. O hospital é o seu Pequod, tripulado por seres tão diversos quanto os marinheiros de Ahab.
Dr. Álvaro, o médico de olhar enigmático, partilha do mesmo ar absorto no horizonte que um dia se viu no Capitão Ahab, como se procurasse algo para lá das capacidades humanas.
— “X,” diz ele, “o que procuras nestes corredores é mais que um simples tratamento. Tal como o mar, este hospital tem profundezas e monstros.”
X reconhece uma estranha atracção, como se a vastidão do oceano fosse, afinal, aquela arquitectura de betão.
— “Talvez eu procure a minha Moby Dick,” murmura, “um ser que encarne a minha dor, a minha procura, a minha luta contra o desconhecido.”
Dr. Álvaro esboça um sorriso críptico.
— “Muitos entram aqui com as suas próprias baleias para caçar. A questão é: estarás tu pronto a enfrentar a tempestade e renascer, ou serás engolido pelas ondas?”
As noites parecem intermináveis, e os gritos dos pacientes erguem-se como ventanias num navio em fúria. X, observando, reflete na luta constante entre a vida e a morte, a lucidez e a demência.
À maneira de Melville, o tempo de X no hospital transcende a experiência clínica, convertendo-se numa meditação sobre a natureza do existir, a sede de sentido que a humanidade ostenta e o conflito eterno com os monstros que se ocultam em cada recanto, interno ou externo.
12
Nos corredores do Hospital Santa Maria, qual autêntico laboratório de almas, X vê desabrochar em si mesmo múltiplas vozes, como se fossem heterónimos a emergir sob o céu de Lisboa. A cada passo, a cada porta, revela-lhe uma nova sombra do próprio ser, reflectida num jogo infinito de espelhos.
Junto à janela do seu quarto, olhando as luzes trémulas da cidade, ecoam-lhe pensamentos dignos de Álvaro de Campos:
— “Neste hospital de corpos e almas despedaçados, sinto-me cindido, alheio a mim próprio. Sou simultaneamente o doente e o observador, o sonhador e o desperto.”
Em certas madrugadas, sob a névoa lunar que penetra o quarto, X escreve versos próximos de Ricardo Reis:
— “Ao som trémulo da noite, aceito o meu destino; pois na tangibilidade do corpo se insinua a eternidade do espírito.”
Em instantes mais recolhidos, é como se o próprio Fernando Pessoa o enchesse de palavras:
— “No espelho do hospital, avisto a multiplicidade do meu ser. Quem sou eu neste universo de sensações? Um jovem doente, um poeta, um louco? Ou todos eles ao mesmo tempo, procurando sentido na imensidão de mim próprio?”
Percebendo a profundidade do labirinto interior, Dr. Álvaro questiona-o:
— “Já descobriste quem és nesta imensa dramaturgia?”
Com um olhar ausente, X responde:
— “A cada dia, nasce em mim um novo ‘eu’. Aqui, neste lugar de dor e esperança, apercebo-me de que sou múltiplo. E nessa multiplicidade talvez encontre a minha essência.”
Assim, o Hospital Santa Maria não serve apenas de casa de cura, mas torna-se um espelho polido onde almas, como a de X, se duplicam e multiplicam, à maneira de Pessoa, procurando aclarar a imensa complexidade de existir.
13
Num Hospital Santa Maria que se assemelha a um laboratório de almas, X sente-se confinado num microcosmo que intensifica os dramas e conflitos do mundo exterior. Aqui, a ciência e a humanidade entrelaçam-se — por vezes em harmonia, por vezes em confronto —, como substâncias que reagem de modo imprevisível quando misturadas.
O passado incrusta-se na sua memória como uma reacção irreversível. Aquela crise de apêndice, ocorrida há sete anos, assemelha-se ao prelúdio de uma ópera complexa. Tal como um átomo, considerado indivisível, esconde uma energia colossal, cada acontecimento da vida de X, mesmo o mais ínfimo, carrega um potencial de transformação ilimitado.
Na Unidade de Cuidados Intensivos, ele assiste a sofrimentos quase alquímicos, onde cada paciente é simultaneamente elemento e composto, fusionando-se e fragmentando-se numa dança perpétua. O paciente africano, ao segredar ideias de fuga, torna-se catalisador de reflexões sobre liberdade e cativeiro, como se o hospital fosse um retículo cristalino que encadeia destinos em padrões difíceis de decifrar.
A própria prática médica — com os seus instrumentos e substâncias, concebidos para desvendar e manipular o corpo — emerge aos olhos de X como uma forma de alquimia. Médicos e enfermeiros assemelham-se a alquimistas, capazes de criar remédios que curam ou potenciam efeitos adversos. X percebe que qualquer intervenção implica uma ética implícita, um poder que requer um manuseamento cuidadoso.
Na serenidade do seu quarto, entre o poente e o romper da alvorada, X escreve. Não apenas para compreender a si próprio ou aos outros, mas para perscrutar o universo físico e metafísico que se descobre nestes corredores. Analisa a fragilidade e a resistência humanas, sonda a vida e a morte, e reflecte sobre as intersecções entre o absoluto e o relativo, o eterno e o efémero.
Deste modo, embora encerrado num espaço finito, X encontra na escrita o passaporte para o infinito, uma forma de transcender os limites do seu corpo vulnerável e explorar as extensões inexauríveis do ser. À semelhança de Primo Levi, que fez da química um espelho do inominável, X converte o hospital num microcosmo onde cada detalhe revela, na “tabela periódica das existências”, a assombrosa e desconcertante beleza de se estar vivo.
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