II Ultra Trilhos dos Abutres

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No passado sábado, dia 28 de Janeiro, teve lugar a 2ª edição dos Trilhos dos Abutres, este ano em formato Ultra.

Este evento desportivo era aguardado com muita expectativa, tendo as inscrições esgotado 2 meses antes da sua realização. Eu fui um dos afortunados que ainda arranjei um lugar para os 45 kms e consegui também inscrever toda a família na caminhada de 13 km.

Na véspera, 6ª feira, após o trabalho e ter ido buscar os miúdos à escola, lá saímos os 4 de Lisboa a caminho de mais uma aventura na Natureza. Tinhamos combinado jantar com o José Carlos Santos e a Vânia, mulher do Zé, e ainda com o casal João e Luísa Ralha e toda a restante comitiva Run 4 Fun, nomeadamente, o  Jorge Esteves, o Paulo Jorge Rodrigues e o Teodoro Trindade. O Nuno Dias de Almeida juntar-se-ia a nós no dia seguinte.

Tivemos alguma dificuldade em chegar a Miranda do Corvo, tendo-nos perdido algures perto de Condeixa. Felizmente lá nos voltámos a orientar e ainda chegámos a tempo de nos reunir a um animado grupo no Restaurante “A Parreirinha”, onde reinava uma inusitada agitação, mercê da clientela pouco habitual, composta maioritariamente por participantes na corrida. Este restaurante foi uma excelente indicação do nosso companheiro Vitorino Coragem, um lídimo representante da Associação Abutrica e decano das provas de trilhos. Deliciámo-nos com uma excelente Chanfana, que foi do agrado de toda a família.

Depois dirigimo-nos para o mui agradável Hotel Meliá Palacio da Lousã, onde iriamos pernoitar nas duas noites seguintes.


Percurso

Após uma noite bem dormida, acordei sábado de manhã cedinho e equipei-me com o arsenal habitual, adaptado para o frio agreste que se anunciava: calções de licra, camisola interior térmica, t-shirt laranja com o logotipo do Run 4 Fun, corta-vento, meias de compressão, luvas, buff para a cabeça, mochila de hidratação, e dentro desta última, o material obrigatório, manta térmica e apito, e ainda o telemóvel, para o caso de alguma eventualidade. Coloquei ainda na mochila o meu combustível de eleição: cinco geís da power bar.

Tomei um farto pequeno-almoço no panorâmico restaurante do Hotel, na agradável companhia dos companheiros Run 4 Fun e depois fui de boleia com o João e a Luísa, pois a Lena e os miúdos iriam mais tarde, uma vez que o autocarro para o ponto de partida da caminhada apenas partiria às 9h45. A temperatura indicada pelo mostrador do automóvel rondava os 3ºC.

Chegámos a tempo de nos colocarmos na fila para o ponto de controle inicial, onde seria verificado o material obrigatório. Depois aguardámos no recinto, confraternizando alegremente, enquanto não era dado o tiro de partida. Foi mais uma entusiasmante oportunidade de rencontrar “velhos” companheiros destas andanças. Digo “velhos” porque embora ainda só ande nisto há dois anos (o meu primeiro trail foi a Ultra da Geira em 2010) sinto que já formei fortes laços de estreita amizade com pessoas interessantes deste intenso meio, que de resto se presta bem a isso. Para além da partilha deste interesse comum, talvez a partilha de momentos de grande esforço e intensidade emocional e a entreajuda física e anímica que emergem nestas provas,  expliquem o estabelecimento fácil de laços entre os participantes.


Alegre grupo Run 4 Fun

Este mecanismo, que forja fortes amizades,  recorda-me uma célebre passagem do discurso do dia de São Crispin da peça Henrique V, de W. Shakespeare:

"This day is call’d the feast of Crispian.
He that outlives this day, and comes safe home,
Will stand a tip-toe when this day is nam’d,
And rouse him at the name of Crispian.
He that shall live this day, and see old age,
Will yearly on the vigil feast his neighbours,
And say ‘To-morrow is Saint Crispian.’
Then will he strip his sleeve and show his scars,
And say ‘These wounds I had on Crispian’s day.’
Old men forget; yet all shall be forgot,
But he’ll remember, with advantages,
What feats he did that day. Then shall our names,
Familiar in his mouth as household words-
Harry the King, Bedford and Exeter,
Warwick and Talbot, Salisbury and Gloucester-
Be in their flowing cups freshly rememb’red.
This story shall the good man teach his son;
And Crispin Crispian shall ne’er go by,
From this day to the ending of the world,
But we in it shall be remembered-
We few, we happy few, we band of brothers;
For he to-day that sheds his blood with me
Shall be my brother; be he ne’er so vile,
This day shall gentle his condition;
And gentlemen in England now-a-bed
Shall think themselves accurs’d they were not here,
And hold their manhoods cheap whiles any speaks
That fought with us upon Saint Crispin’s day."

- From St. Crispin's Day Speech of Shakespeare's Henry V


Para melhor me situar no espaço e no tempo, vou ocasionalmente socorrer-me da útil informação dos excelente relatos do João Ralha, Nuno Dias de Almeida e Luís Ricardo.



Altimetria e Ritmo

Assim que o “tiro” de partida foi dado os atletas que estavam na fila da frente partiram tão rápido que mais parecia se prepararem para correr 10 kms em lugar de 45. Eu próprio completei este primeiro km em 4’13’’. Deve ter sido da excitação do início e da vontade de não ficarmos bloqueados na fila nalgum single-track que estivesse aí ao virar da esquina. Démos uma volta a Miranda do Corvo, passámos pelo parque biológico e depois seguimos em direção à Serra. Ao fim de 10 minutos a correr já me sentia cheio de calor e tive que remover o corta-vento e colocá-lo na mochila. Já devia saber, pois em corrida alguma necessitei de mais do que uma camisola interior, para além da t-shirt.

Levada
Durante os primeiros 16 kms fui sendo sucessivamente ultrapassado por mais de duas dezenas de atletas. Sentia-me lento e pesado e interrogava-me acerca do que teria comido aquela gente ao pequeno-almoço para acordarem tão cheios de energia.

Logo no início tivémos que enfiar os pés dentro da água de um ribeiro e logo de seguida na lama que encontrámos em abundancia nesta parte inicial do percurso, devido aos profusos cursos de água que corriam dentro de uma floresta cerrada. Foi um baptismo que deixava antever o que iriamos encontrar mais para a frente. Felizmente esse previsão saiu gorada e a maior parte da humidade concentrou-se nestes kms iniciais, senão julgo que teríamos tido grandes dificuldades nas partes mais técnicas que se concentraram na segunda metade do percurso.

Os primeiros 11 kms não apresentaram dificuldades de maior, mas a partir desse ponto teve início uma subida muito acentuada, até ao km 16 e depois novamente entre o km18 (2º abastecimento) e o km 20, onde, cumpridos 2h30 de prova, atingi finalmente o ponto mais alto do Concelho, com 940 metros de altitude, perto das eólicas. 

Depois, até aos 24 kms, foi sempre a descer, com um troço particularmente difícil num corta-fogo inclinadíssimo que atrapalhou, e muito, bastantes atletas. Foi nesta descida que comecei a recuperar rapidamente os lugares que tinha perdido na primeira metade da corrida. Ultrapassei dezenas de companheiros. Aguentei um ritmo elevado e voei veloz até ao 28º km, onde se encontrava o 3º abastecimento. Após esta fase da corrida raramente me cruzei com alguém.

Ao km 34 entrei na bonita Aldeia de Xisto de Gondramaz mal sabendo da surpresa que nos aguardava logo de seguida: um troço de cerca de 200 metros em que tivémos que descer agarrados a cabos de aço para não nos despenharmos pela escarpa abaixo.  Os quilómetros seguintes não foram significativamente mais fáceis, feitos em single-track junto ao rio, num percurso belíssimo mas perigoso, em que era necessária uma atenção constante onde colocávamos os pés.  Passámos por várias cascatas e atravessamos o rio diversas vezes, sobre escorregadios troncos de madeira. Ia com o coração apertado ao pensar que os meus filhos tinham passado por aquele percurso algum tempo antes, integrados na caminhada dos 13 kms. Por cada bombeiro que passava fazia insistentemente a mesma pergunta: “não ocorreu nenhum acidente com nenhuma criança, pois não?!”


Cascata


Subida final
Por fim cheguei ao abastecimento do km 39, onde parei para beber uma coca-cola e ingerir um cubo de marmelada. Até aqui ainda não tinha parado nos abastecimentos, socorrendo-me da minha provisão de água e geis energéticos. No entanto, cumpridas 5h14 de prova, essas provisões já se revelavam manifestamente insuficientes, pelo que foi necessário um pequeno reforço.

Daqui arranquei para a parte final da corrida, cerca de 4 kms entre pinhais e dois já na vila. Gastei as últimas forças que ainda tinha, e deparei-me ainda com uma curta mas dolorosa subida final em que fui atacado por caimbras pela primeira vez. Duzentos metros depois estava a meta, dentro do pavilhão desportivo. Cruzei-a depois de 5h49 de esforço,alegria, sofrimento, exultação, espanto e muitos mais sentimentos contraditórios que se vivem com intensidade nestes eventos repletos de momentos ímpares. Tinha percorrido 45 kms com 2100 m de desnível positivo e chegado em 27º lugar da geral, 11º do meu escalão (M40M).

Bebi umas minis fresquinhas para repor os electrolitos :-) e fui confraternizando com quem chegava. O Zé Carlos Santos já lá estava, tendo conquistado galhardamente o 1º lugar do seu escalão, em 5h39. Foi um enorme regresso às provas, e às vitórias, muito bem merecido dado os treinos rigorosos que cumpriu e que eu tive a honra de acompanhar numa pequena parte.


Zé Carlos, no esforço final

O vencedor da edição deste ano foi o Armando Teixeira, numas incríveis 4h21! Enfim, esses tempos não são para todos...

Pouco depois chegaram os membros Run 4 Fun da minha família, juntamente com a Vânia, mulher do Zé Carlos, felizmente sãos e salvos, e até bastante satisfeitos apesar das cerca de 4h30 de passeio.

Infelimente não pude esperar que os restantes companheiros do Run 4 Fun cumprissem a sua chegada à meta, em triunfo merecido para cada um deles, pois os miúdos já começavam a ficar impacientes. Deixo aqui os meus parabéns ao Nuno pela sua mui auspiciosa estreia nestas lides, ao Paulo Jorge por mais uma excelente prestação, ele que se iniciou nestas andanças há apenas 9 meses (até custa a crer!), ao Jorge e ao Teodoro por mais um desafio completado, eles que já são experientes Ultra-trailers, e ao João e à Luísa pela sua primeira Ultra, completada com sucesso, e logo que Ultra!!!

Cabe aqui uma palavra de apreço para a organização, que esteve impecável.  Nunca tinha visto uma marcação de prova tão cerrada: existiam fitas laranja quase de 10 em 10 metros! Os abastecimentos eram abundantes, via-se o corta vento laranja da Associação Abutrica por todo o lado e existiam bombeiros em todos os pontos essenciais. O almoço/jantar estava bem organizado e toda a gente foi de uma simpatia extrema.

É certo que existiram alguns troços um pouco perigosos, mas a mim isso preocupou-me mais no caso dos participantes na caminhada do que nos das provas competitivas. Estes últimos usualmente já sabem ao que vêm e devem abster-se de dar o passo mais largo do que a perna onde a tecnicidade recomenda prudencia. O único senão que tenho a apontar é o facto de a caminhada ainda estar a decorrer quando atletas das provas competitivas já estavam a terminar, o que obrigava a alguma ginástica para não nos atropelarmos mutuamente.

Enfim, em jeito de resumo, gostei muito da prova e penso voltar para o ano. Os Abutres estão sem dúvida de Parabéns com P grande!

Quanto a nós, família Bárrios Ferreira, ainda aproveitámos o domingo para ir almoçar ao célebre restaurante “O Burgo”, onde retemperámos as forças com um excelente cozido, copiosamente regado com um encorpado jarro de tinto da região.

Depois tivémos que voltar para Lisboa, onde nos aguardavam os afazeres mundanos da vida.

Comentários

  1. Publicado no Blog R4f:

    Caros amigos,

    Lembro-me bem do nosso 1º treino na Serra de Sintra no dia 16 de Janeiro de 2011, dia de muito frio, mas com mais de 30 bravos representantes dos R4F a marcarem a sua presença!

    Espero que esse treino tenha contribuído de alguma forma para despertar o gosto pelo Trail, e é com muito prazer que vejo hoje um cada vez maior "contingente laranja" neste tipo de provas, e assisto à presença em grandes eventos de Ultra Trail de atletas R4F como o Paulo Jorge (grande evolução de um grande amigo) Luís Matos Ferreira entre outros.

    Não esquecendo a grande prestação de todos os presentes nesse treino de há um ano atrás, lembro-me claramente do Luís e da sua capacidade física, mesmo num "terreno" que era uma novidade para quase todos.

    Ao longo deste último ano tenho tido o privilégio de usufruir da sua amizade e companhia em diversos treinos na Serra de Sintra e também em algumas provas.

    Um ano depois, o Luís é um atleta completo que não pára de evoluir, e que tem atingido marcas fantásticas, sobretudo na estrada onde centra a maioria das suas participações.

    Confidenciou-me no passado sábado que pensa dedicar-se mais ao Trail neste ano de 2012, e penso que não arrisco enganar-me ao vaticinar que também nesta modalidade o Luís irá rapidamente atingir níveis ainda mais elevados que os que já evidencia.

    Comparável à sua capacidade atlética só a sua inspiração literária como muitos de nós já assinalámos aqui neste blog, e é por isso que termino com uma pergunta para ele: Luís para quando o teu 1º romance? :-)

    Grande abraço e boa sorte para Sevilha!!

    Zé Carlos Santos

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  2. Grande Zé Carlos!

    Muito obrigado pelas palavras simpáticas com que me agracias, mas sobretudo muito obrigado pela tua amizade, companheirismo e ajuda, que muito aprecio.

    Foi graças a ti que comecei a realizar, com alguma assiduídade, treinos na belíssima Serra de Sintra, quase sempre na tua agradável companhia e de mais alguns bons companheiros como o Paulo Jorge. Esses treinos têm sido determinantes para a minha evolução enquanto atleta.

    Conto com a tua companhia por muitos mais treinos e provas e possamos sempre atíngir os nossos objectivos.

    Um grande abraço

    Luís Ferreira

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