Réccua Douro UltraTrail
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Assim que lá cheguei perguntei pelo João Marinho, o organizador deste soberbo evento e pelo Hélder Monteiro, experiente fisioterapeuta, fundador da TMG – Terapias. O João veio logo receber-me calorosamente e apresentou-me ao Hélder. Eu tinha contactado previamente o João pois a minha participação na prova de 80 km estava em risco, mercê de uma entorse ocorrida num treino na Serra no sábado anterior.
Ganho a amizade de dois membros da organização ao afirmar em tom de brincadeira que vim cá de propósito de Lisboa só para castigar o corpo.
«O Doiro sublimado. O
prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um
panorama que os olhos contemplam: é um excesso de natureza. Socalcos que são
passados de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que
nenhum escultor pintou ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além
dos limiares plausíveis de visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado
de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o
rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora
pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A
beleza absoluta».
Miguel Torga in "Diário XII"
Miguel Torga in "Diário XII"
Neste sábado, 13
de Setembro de 2014, dia de São João Crisóstomo, patrono da eloquência sagrada,
senti-me um “homem titânico a subir as encostas, volumes, cores e modulações”
que gravaram a ferro em brasa uma marca indelével nas retinas dos meus olhos.
O Douro é como um
cavalo selvagem, domado pela vontade férrea do dono. São socalcos esculpidos no
xisto por titãs primevos. É luz, cor e cheiro. Tudo em dose excessiva.
Na 6ª feira, após
uma jornada de trabalho, eu e a Lena saímos de casa, por volta das 19h30, entusiasmados
por mais uma oportunidade de percorrer este nosso belo país.
Às 23h15
chegávamos a Peso da Régua. Tivemos apenas tempo para fazer check-in no Hotel
Régua Douro e em seguida dirigi-me para o Museu do Douro, onde estava sediada a
organização da prova.
Assim que lá cheguei perguntei pelo João Marinho, o organizador deste soberbo evento e pelo Hélder Monteiro, experiente fisioterapeuta, fundador da TMG – Terapias. O João veio logo receber-me calorosamente e apresentou-me ao Hélder. Eu tinha contactado previamente o João pois a minha participação na prova de 80 km estava em risco, mercê de uma entorse ocorrida num treino na Serra no sábado anterior.
Com algumas
manobras eficazes, as mãos experientes do Hélder aliviaram o edema pronunciado
que eu tinha no tornozelo direito. De seguida ligou-me o pé e fiquei logo a
sentir-me bem melhor. Acordámos que eu iniciaria a prova dos 80 km e a meio
avaliaria se estaria em condições de terminar.
Levantei o dorsal
às 24h, hora de fecho do secretariado, tendo primeiro mostrado o material
obrigatório, e voltei para o Hotel. Cerca das 1h30 lá adormeci, para o que iria
ser um sono curto mas revigorante.
O alarme tocou às 4h50 e depois de vestir o equipamento habitual tomei o pequeno-almoço mais frugal de todas as provas em que participei: meia-dúzia de bolachas e uma maçã. “Que se lixe”, pensei eu, como no primeiro abastecimento que houver.
O alarme tocou às 4h50 e depois de vestir o equipamento habitual tomei o pequeno-almoço mais frugal de todas as provas em que participei: meia-dúzia de bolachas e uma maçã. “Que se lixe”, pensei eu, como no primeiro abastecimento que houver.
Às 5h50 cheguei à
linha de partida, no jardim em frente ao Museu do Douro, onde o meu dorsal foi
controlado. Cento e poucos Trail Runners já se encontravam alinhados para o
tiro de partida, era ainda noite escura.
Reencontrei o
amigo Luís Ricardo, que tinha vindo com uma alegre comitiva alentejana no
autocarro do Centro Vicentino da Serra e também o Nuno Rocha, colega da Vodafone,
que se está a preparar afincadamente para o desafio “Vodafone First – UTMB
2015”.
Às 6h em ponto
soa o tiro de partida e somos guiados pela povoação até sairmos para as vinhas
circundantes. Levamos os pirilampos ligados para vermos o caminho. Temos uma
subida e descida suaves pela frente até chegarmos ao abastecimento da povoação
de Rede, a 14 kms, junto ao Douro, onde chegamos já dia claro. Aproveito para
tomar o pequeno-almoço, enchendo a barriga de aletria docinha, que me sabe que
nem ginjas (muita aletria ingeri eu ao longo de toda a prova...).
Tenho vindo
sempre acompanhado pela presença reconfortante do Luís, e vou-me cruzando com o
Nuno. Vejo outras caras conhecidas, como o Zé Capela e a Susana Simões.
De seguida
seguimos para Mesão Frio, a 4 km de distância. A partir daqui o percurso vai
ser sempre a subir até chegar ao alto da Senhora da Serra, a 1400 m de
altitude.
Perto de Passos
cruzamo-nos com um velhote que nos diz que se comermos as uvas levamos com
chumbo grosso. Ficamos na dúvida se a ameaça era a brincar ou para levar a
sério, mas na dúvida o melhor é não mexer na uva.
Vamos sempre
subindo, por largos estradões e a paisagem vai-se modificando, tornando-se mais
agreste e menos domada pelo homem.
Aos 27 kms o
Ultra Trai e o Trail tomam caminhos diferentes. Do lado esquerdo espera-nos a
famosa subida da Diana, um autêntico cai de costas! Num quilómetro e meio vamos
ter que subir 300 m. Bem, não adianta chorar, o melhor é começar e só parar
quando chegar lá acima. São 27 minutos de esforço contínuo até chegar junto dos
bombeiros lá no alto, quais faróis vermelhos que se divisam ao longe e guiam a
nossa nave até porto seguro.
Daqui seguimos
para o alto do Marão, na Senhora da Serra, a 1400 m de altitude.
As vistas são
deslumbrantes, de cortar a respiração, que já vai esforçada da subida. Aqui em
cima sentimos o bálsamo do vento fresco, naquilo que até agora tem sido um dia
quente e húmido.
Vejo uma figura a
correr desalmadamente pela encosta abaixo. Mas a corrida é na direção oposta!
penso eu. Quando o vulto chega mais perto lá identifico o amigo Luís Duarte que
anda a treinar para o Ultra Pirinéu e a tirar fotografias aos atletas dos 80
km. O homem sobe e desce a encosta como se não houvesse amanhã! (no fim-de-semana seguinte haveria de
demonstrar a sua grande forma ao conseguir o 10º lugar nos 103 km do Ultra
Pirinéu, em Espanha).
O abastecimento
do pico, no km 34, é o Oásis porque todos ansiamos e onde chego após 4h52 de
prova. Ingiro mais uma dose abundante de aletria e batatas fritas. Atesto os
dois bidões de 500 ml que levo ao peito e arranco atrás da Susana Simões que
sai disparada.
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A aletria é minha!!! |
Agora vai ser
sempre a descer até o abastecimento de Soutelo, no km 45. Até aqui o tornozelo
tem-se aguentado muito bem, por isso decido continuar (até hoje nunca abandonei
nenhuma prova e não iria ser com certeza esta a primeira vez).
A descida é mais
dura no tornozelo do que a subida, mas enquanto tiver a sorte de não voltar a
torcer sinto que consigo prosseguir (aliás, eu sou mais de quebrar do que de
torcer).
Após o que
pareceu uma eternidade, lá chego ao Soutelo, onde resolvo não me alimentar pois
vou um pouco enjoado. Nunca é uma boa opção e pouco depois já me irei
arrepender desta decisão irrefletida, quando me começar a faltar o gás (com a
experiência que já levo ao fim de 5 anos de Trail Running e ainda continuo a
repetir os mesmos erros… ) Aproveito para ir à casa de banho pois a barriga não
se está a sentir nada bem e reclama insistentemente com a forma como a estou a
tratar.
Sigo com alguma
dificuldade em direção ao km 57. Do km 55 ao km 57 vou ter que aguentar uma
subida de 350 m. Esta subida ainda me custa mais do que a da Diana, dado o meu
estado um pouco debilitado e o cansaço acumulado. Às 8h18 de prova lá chego finalmente
ao abastecimento de Fontes. O nome é muito apropriado. Para mim é uma fonte de
repouso, alimentação e conforto, que bem estou a necessitar. Mais uma dose
generosa de aletria, diluo duas saquetas de sais num dos bidões e saio
reconfortado para as derradeiras etapas da prova.
Agora vamos
descer até Sta. Marta de Penaguião, no km 64. Aqui espera-nos uma originalidade
gira. Atravessamos o relvado do campo de futebol local, que se encontra aberto
de propósito para nos receber.
O calor faz-se
sentir com muita intensidade, sobretudo nos vales pouco arejados. Bebo água constantemente,
como se tivesse o radiador furado. Felizmente a organização teve a excelente
ideia de assinalar no dorsal os pontos onde iríamos encontrar fontes dentro de
povoações, que eu aproveito sempre para abastecer. Numa delas recordo-me de
encontrar o Nuno Fofoni, com ar de já ter sofrido bastante com o sol.
Ganho a amizade de dois membros da organização ao afirmar em tom de brincadeira que vim cá de propósito de Lisboa só para castigar o corpo.
Cumprimento todos
os populares com que me vou cruzando e eles devolvem sempre o cumprimento, com
dizeres muito pitorescos: “que Deus o auxilie!” (bem preciso...)
A certa altura um
casal de velhotes comenta quando passo, uns 10 metros atrás de um atleta mais
jovem que levava bastões: “olha, este é mais velhote mas não precisa das
canas!”
Existem imensos
voluntários no terreno e também estes são muito hospitaleiros, alegres e
prestáveis. Abençoada gente do Norte!
Próxima paragem:
Medrões! Km 71. Mais uma subida e lá estou, depois de passar pelo meio das
vinhas e cruzar-me com gente que vindima. O cheiro a uva fermentada é uma
constante ao longo do caminho. Deve ser o teor alcoólico da humidade que paira
no ar que me mantém animado e pronto a continuar.
10h24m de prova e
chego a Medrões. Faltam-me 8 km para o fim. Já cheira a meta! Alimento-me e
bebo abundantemente pois vou necessitar de todas as gotas de água que conseguir
levar comigo. Agora é dar tudo o que me resta até ao fim. 2 km a subir seguidos
de 6 km a descer. Na descida já se consegue ver a Régua ao fundo. Não é uma
miragem! É altura de acelerar! E lá vou eu feito louco num sapateado violento e
ritmado encosta abaixo.
Quando finalmente
chego à Régua, sou orientado pelos voluntários ao longo das ruas até chegar à
ciclovia, da qual se divisa o Museu ao fundo. Vejo um atleta uns 300 metros à
minha frente. Ele olha para trás e acelera, com medo de ser ultrapassado na
reta final. Eu não quero saber disso, a única coisa que me interessa é cruzar a
meta. Quando estou quase a chegar sou saudado efusivamente pela Rita, mulher do
Luís, e pelo Zé Presado e restantes companheiros de Portalegre. Isso dá-me
alento para acelerar e minutos depois cruzo a meta muito satisfeito por mais um
desafio completado, 80 km em 11h20m.
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Eu e o Luís Ricardo |
Sou recebido pelo
animador de serviço, que vai perguntando aos atletas o que acharam da prova e
depois pelo João Marinho, que incansável vai supervisionando tudo para nada
falhe. Troco ainda umas palavras com o André Amorim, que me conta do trabalho
todo que a organização teve para garantir que não faltava nenhuma fita no dia
da prova. É um trabalho duro mas essencial, pois por vezes as fitas são
retiradas por populares que ignoram a sua utilidade ou chegam mesmo a ser
comidas por vacas! Se faltarem fitas no percurso todo o esforço de meses pode
ser deitado a perder.
Sou visto
novamente pelo Hélder, que fica surpreendido por eu ter feito a prova toda e pelo
estado do meu tornozelo não se ter agravado desde o dia anterior. Afianço-lhe
que se deve sem dúvida ao tratamento muito eficaz que me tinha feito na
véspera.
Depois de trocar
impressões com vários atletas que vão chegando e outros que já tinham chegado,
dirijo-me ao hotel para tomar um banho retemperador e para me preparar para o
jantar na casa da equipa alentejana, que graciosamente nos tinha convidado a
ambos.
Não há dúvida que
ninguém bate em hospitalidade os alentejanos. Comemos abundantemente, muito bem
regado com umas minis bem fresquinhas, que me permitiram repor os sais
perdidos.
A boa disposição
e alegria foram constantes.
Voltamos para o
Hotel, de onde disfrutamos de uma vista magnífica sobre o Douro e os socalcos
da vinha.
No dia seguinte
às 10h encaminhamo-nos para o Museu do Douro para assistir à cerimónia de
entrega de prémios.
O local escolhido
é soberbo. Um dos principais patrocinadores da prova, o Réccua Douro vinho do
Porto tem um stand onde nos dá a provar alguns dos excelentes néctares da
região.
Os vencedores das
várias provas (15 km, 40 km e 80 km) são chamados ao pódio. O vencedor da
classificação geral da prova dos 80 km masculinos é o Rui Luz com um tempo
fabuloso de 9h17m.
A vencedora
feminina é a Ana Rocha Gonçalves, em 10h47m, logo seguida pela Susana Simões em
10h49m.
Nos escalões
masculinos são distribuídos prémios nas categorias de Elite (Séniores) e
Masters (maiores de 40 anos).
Qual não é a
minha surpresa quando ouço o meu nome dado como segundo classificado do escalão
Masters! Diga-se o que se disser, é sempre uma alegria ir ao pódio. Não é o
mais importante, mas pode significar a cereja em cima do bolo.
Depois da entrega
de prémios a organização chamou toda a equipa organizadora e atletas para o
palco, onde tirámos uma bela foto de conjunto. A organização esteve a um nível
bastante elevado, com apenas alguns pequenos pormenores a destoarem por
contraste com um conjunto em regra impecável.
Depois ainda
fomos almoçar ao restaurante Douro In, onde fomos muito bem servidos.
E assim terminou
mais um excelente fim-de-semana. Pudera eu durar ainda muitos anos a gozar de
saúde para poder viver muitos mais momentos destes.
Este comentário foi removido pelo autor.
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