Maratona do Porto 2018
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RUN 4 FUN |
"Ah, to be no longer conscious of being,
like a stone, like a plant! To remember no longer even one's own name!
Stretched out upon the grass, hands interlaced at the back of one's neck, to
look up at the dazzling, sun-puffed clouds as they sail past in the blue sky,
to listen to the wind which makes, up there in the chestnut grove, a sound like
the breaking of the sea."
- Luigi Pirandello, "Um, ninguém e cem mil"
Ma-ra-to-na… quatro sílabas que
se enrolam na língua batendo o ritmo, a primeira aberta e solta, no fluir simples
e fácil dos primeiros quilómetros, as duas seguintes a chicotearem os dentes, com
o impulso e a determinação necessários para percorrer o longo e solitário percurso
intermédio, e a última, crescendo para a meta, na antevisão do doloroso
esforço final.
Na linha de partida, a massa
humana acotovela-se, fremente de antecipação e entusiasmo. O nervoso miúdo
evola-se tremente no odor acre a adrenalina e o calor transmite-se lentamente de
corpo para corpo sintonizando o coletivo para a prova que está prestes a ter
início. Aqui e ali trocam-se piadas, cumprimentos, desafios.
A mente produz um estado de agitação
nas vísceras internas e nos músculos das pernas e estas retornam uma imagem
corporal da tónica dominante da emoção que o eu experiencia. O sentimento
prevalecente é uma mescla de ansiedade pela incógnita dos longos quilómetros e de
alegria pela antecipação do prazer de correr.
A partida é finalmente dada e a mole
humana é projetada para a frente, liberta enfim dos seus freios. É como um rio
que rompe irredutível por uma barragem e cai glorioso sobre o vale.
Entro no ritmo estável dos pés tocando
levemente o chão, enquanto a chuva tem início, refrescante, limpa, revigorante,
amparado por dezenas de companheiros. Somos uma grande manada de gnus migrando
na savana africana.
Vou domando os receios traiçoeiros
que vão assolando a minha mente: será que vou quebrar nos últimos 7 quilómetros,
como em Lisboa? Deveria ter descansado mais na semana que passou? Procuro
esvaziar o cérebro de tudo o que não seja o sentimento de si que o corpo me
proporciona. Sentir as pernas a mover alternadamente, o coração a bater forte,
os pulmões a inflar, a brisa no rosto.
A adrenalina vai dando lugar às
endorfinas. Os receios iniciais vão sendo substituídos pela calma. O ritmo vai
oscilando entre os 4:45 e os 4:55 por km. Suficientemente regular para não se
tornar demasiado desgastante.
Chegamos às arcadas de metal da
ponte D. Luís I. É a passagem para a outra margem. O Porto tem muita gente na
rua a aplaudir e incentivar os atletas. Gritam pelo nosso nome, que encontram
escrito no dorsal. “Luís! Luís! força tu consegues!” O incentivo lava a alma e
irmana-nos numa corrente humana de apoio e solidariedade. O desporto tem o dom
de conseguir trazer ao de cimo que de melhor e de pior existe no ser humano.
Nunca é neutro. É sempre colorido pelo arco-íris da emoção.
Em Gaia, percorremos o troço junto ao Douro. Cruzamo-nos com os atletas que voltam já no retorno. Um
primeiro grupo voando baixinho a uma velocidade alucinante. Depois um hiato
longo e um segundo grupo em bom ritmo. De seguida vão surgindo atletas esparsos,
progressivamente engrossando até que passa o grupo compacto dos que seguem a
bandeira das 3 horas. Pouco depois vejo o Luís Carvalho passar. Grito-lhe o meu
apoio. De seguida vem a bandeira das 3h15 seguida por um grupo ainda maior e
mais compacto. Contorno o ponto de viragem. Cruzo-me com o João Sousa e tocamos
as mãos. De seguida passo pelo Fernando Rosete, Manuel Romano, Nuno Dias de
Almeida, Jorge Paulo, Jorge Esteves, Elsa Mota, Gonçalo Melo, Miguel San-Payo, Nuno
Marques, Pedro Morgado. Este desporto é singular e paradoxalmente individual e
coletivo. Todos estes rostos e as pessoas por detrás deles, únicas, alegres,
bonitas, maravilhosas, fazem mais pelo meu ânimo do que uma biblioteca inteira
de livros de auto-ajuda ou comprimidos de prozac alguma vez poderiam fazer.
Estou a chegar novamente à ponte.
Vinte e nove estão feitos. Sinto-me surpreendentemente bem. Falta o terço
final. É uma incógnita como me sentirei nesses derradeiros quilómetros. Afinal de
contas, a minha preparação está longe de ter sido aquela de que eu gostaria.
Após um período de um ano de quase completa ausência, com serviços mínimos no
que diz respeito à corrida, voltei a treinar regularmente no final de julho.
Falta-me readquirir a confiança e experiência que advém da participação regular
em provas de várias distâncias.
Seguimos para leste, na margem
norte do Douro. Vou cumprindo escrupulosamente o meu plano de ingestão
calórica: um gel de 42g de 7 em 7 kms.
De forma subtil, o corpo vai
tentando forçar-me a abrandar. Ou melhor, a mente, baseada nas leituras que faz
do esforço despendido. Os limites humanos são regulados pelo cérebro, que
procura a todo o custo evitar que o corpo saia de limites relativamente
estreitos de homeostasia. Os parâmetros que permitem a vida são muito bem
definidos, no que diz respeito à hidratação, temperatura corporal, inflamação,
ph, etc. É um meio muito estável e que é necessário preservar. Para isso
concorrem a dor e a sensação de esforço. O cérebro orquestra um estado mental
que nos força a abrandar quando se forma uma perceção subconsciente de desgaste
excessivo. No entanto esses limites são ajustáveis. Existe sempre uma folga
relativamente lata que pode ser encurtada.
Forço-me a manter o ritmo. Nesta
fase da corrida, essa manutenção exige uma atenção constante. Um esforço
continuado de concentração. Passo finalmente pelo km 32. É um marco
psicológico. A partir aqui faltam os 10 kms finais. Surpreendentemente, sinto-me
bem. Muito bem até. O meu ritmo cardíaco médio tem sido de 140 bpm, o que
significa que em termos cardíacos estou folgado. O fator limitativo são as
pernas e o meu receio da falta de quilómetros de treino, que me levam a assumir uma
abordagem conservadora. Agora que a meta já se adivinha, permito-me soltar as
pernas. Aumento o ritmo para os 4:45 médios
É uma sensação ótima, de enorme
júbilo, conseguir acelerar no final. Vou ultrapassando muitos atletas que se encontram
nitidamente desgastados. Sei agora que vou conseguir acabar bem. Chego à Foz. Subimos
para Norte, sempre acompanhados pela chuva grossa. Passamos pela rotunda do Castelo
do Queijo. Falta o derradeiro quilometro. Acelero como se estivesse possuído
pelo próprio belzebu. Uma curva para a direita, outra para a esquerda e estou
na linha da meta. Atravesso-a enquanto o relógio ainda marca as 3h26. O tempo,
sempre o tempo, medida de todas as coisas, balança onde se equilibra o espaço
que vai do nascimento até à morte.
Sinto-me feliz, redimido, uno. A
chuva cobre com pudor as lágrimas da minha pungente emoção.
“I've seen things you people wouldn't believe.
Attack ships on fire off the shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in
the dark near the Tannhäuser Gate. All those moments will be lost in time, like
tears in rain. Time to die.”
- Blade Runner
... or to be reborn, acrescentaria eu.
Mais uma pérola literário-desportiva. Obrigado pela partilha Luís.
ResponderEliminarObrigado eu pelo incessante incentivo João. É para mim valioso, tal como é a tua amizade.
EliminarBrilhante crónica, amigo Luis. Delliciosa de ler e de sentir. E parabéns pela excelente prestação. Abraço.
ResponderEliminarMuito obrigado amigo Fernando! E muitos parabéns também por mais uma boa Maratona e por seres totalista, o que é um feito nada despiciendo!
ResponderEliminarBrilhante texto Luís.
ResponderEliminarParabéns pela conquista vque e sempre mais saborosa com todas estas emoções, o sangue, suor, a dor, as lágrimas e até a chuva.
Para mim quando bem preparada tem sempre um final emocionado.
Abraco e Obrigado pela partilha
Muito obrigado Nuno! Foi uma Maratona épica, com aquele tempo inclemente. Os nossos treinos conjuntos ajudaram! Abraço amigo
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