Years of Love
“Quando se ama, tamanho é o amor, que não cabe em nós: irradia para a pessoa amada, onde topa com uma superfície que lhe corta a passagem e o faz voltar para o ponto de partida; e essa ternura que nos devolve o choque, ternura que é nossa, é o que chamamos o sentimento do outro, e mais nos agrada o nosso amor quando vem do que quando vai, porque não notamos que procede de nós mesmos.”
- Marcel Proust
“You never reach any truth without making fourteen mistakes and very likely a hundred and fourteen. And a fine thing, too, in its way; but we can’t even make mistakes on our own account! Talk nonsense, but talk your own nonsense, and I’ll kiss you for it. To go wrong in one’s own way is better than to go right in someone else’s.”
― Fyodor Dostoevsky
Só Deus sabe quantas vez errei.
Agora que me aproximo da hora final tenho o tempo todo do mundo, que é aquele que me resta, para passar em revista os eventos da minha vida. Vivi uma vida longa, cheia de anos, e dentro de cada ano, repleta de memórias. Muitas já escorreram, entre os meus dedos, como areia no tempo. Outras conservo junto ao meu coração, onde deixaram marca indelével.
Na sua maioria os eventos são nublosos, contraditórios e extravagantes de tanto serem mastigados. Outros há cuja chave há longo perdida surge por vezes, sem aviso, abrindo a gaveta onde se escondiam. Esses têm a frescura de terem estado guardados longo tempo inalterados.
O tempo, esse escultor invisível, não apenas molda a nossa aparência, mas também as nossas percepções. Olhando para trás, é difícil distinguir o que realmente aconteceu do que inventamos para tornar as memórias suportáveis. É como um quadro antigo, restaurado tantas vezes que já não sabemos se as cores originais permanecem. No entanto, talvez isso não importe. Talvez a verdade seja apenas aquilo que escolhemos carregar connosco.
Cada escolha que fiz ramificou o meu universo em múltiplas outras escolhas. Poderia ter seguido infinitos outros percursos, num jardim de caminhos que se bifurcam. O impulso do bater de asas de uma borboleta ter-me-ia levado para muito longe. No entanto há algo que me diz que todas essas escolhas me levaram exatamente ao ponto onde teria que estar, como se o trajeto fosse inevitável.
Sou eu aquele que escolhe ou sou apenas o lugar da escolha? O resultado de muitos outros terem escolhido por mim? O meu gesto é inevitável, ou completamente determinado?
Errei? Sim, errei muito. Mas agora que o tempo se esgota, o erro confunde-se com o sucesso, no cadinho da memória. É uma serpente que morde a própria cauda. Nascer, aprender, trabalhar, amar, casar, reproduzir, envelhecer, morrer. Voltar ao ponto de partida.
As primeiras memórias são vagas e indistintas, como coisa nenhuma. Uma paisagem castanha, empoeirada. Canas. Um cão que ladra.
Ainda mais antigo e profundo: fome, cólica, o calor de um colo. Ou a ausência dele. Um mundo novo e estranho que entra pelos poros. Mediado, modulado pelo colo.
Uma voz e ritmo conhecidos, pacificadores. O olhar penetrante procurando ler a expressão do rosto. A aprendizagem da causa e efeito. Choro logo bebo. A construção do vínculo.
Dentro do pequeno cérebro em desenvolvimento, existe um pequeno feijão, a Amígdala, uma mala que guarda todas essas emoções.
Muito mais tarde se aprende a nomear os objectos do mundo. A catalogar os estados de alma. A ter consciência do que está dentro e para além de nós. A criar essa barreira permeável entre o de dentro e o de fora.
A construção de um ser humano é um processo muito complexo. Começa nos genes, mas está muito longe de ser sobre-determinado por eles. São apenas um início. Cada célula é ativada de forma única e depende das que a rodeiam. O organismo é um conjunto sincronizado de entidades com vontade própria, que vai crescendo em sofisticação moldado pelo exterior.
O processo está sujeito a muitos erros de transcrição, interpretação, conjugação. E ainda os erros de ligação, junção, separação. Mas tem uma enorme capacidade de resiliência, ou anti-fragilidade para crescer para além das suas limitações.
Aquela fúria que o assoberbava.
Desde as primeiras namoradas que o surpreendia sempre que alguém o pudesse encarar com aquela ternura líquida que se lia nos olhos. Era algo que simultaneamente o fascinava e assustava.
Elas rendiam-se aquela impetuosidade da fuga para a frente. Aquela energia louca que ele colocava em tudo o que fazia. Pelo menos no inicio.
Algumas queriam salvá-lo de si próprio. Outras viciavam-se no carrossel de emoções. Na originalidade e brilho que ele irradiava. Eventualmente o combustível terminava e ele regressava ao estado de menor energia. Como um átomo que tivesse irradiado o seu último fotão de luz.
Anos de relacionamentos breves, fugazes, explosivos. "Better to burn out than to fade away".
Leitor, escrever é um processo doloroso. É uma agonia. A frase correta, aquela que parece estar na ponta da língua, ilude-nos teimosamente. Escrevemos e reescrevemos sem nunca ficarmos verdadeiramente satisfeitos. Falta algo que poderia transmitir melhor um estado de alma, uma palavra que descreveria melhor uma circunstância, um adjetivo para caracterizar melhor um objecto.
Ela agradou-lhe logo desde o inicio. Traços fortes, vincados, de uma beleza invulgar. O olhar líquido era mais intenso, mais brilhante. A ternura maior, mais forte. O sorriso mais aberto. A solidez maior, para acomodar o embate. Alguém com uma força feroz, resoluta vontade de conquistar o mundo. A ardente necessidade de cuidar onde não fora cuidada.
Ambos marcados. Ambos lutando com os seus demónios. Ambos incapazes de baixar os braços.
Ele agradou-lhe também, pela graça expontânea e meio tola. Pela vulnerabilidade evidente. Pelo calor.
Alguém com quem pudessem compartilhar os dias solitários.
O amor fora crescendo. Um oasis de segurança para acolher um vazio intransponível. O vazio era um buraco negro triturador. Mas até mesmo um buraco negro pode evaporar.
Como amar profundamente alguém quando nós próprios temos feridas tão profundas?
Uma outra ela nascera noutra era. De uma mãe austera e distante. Raizes fundas no trabalho do campo. A última de uma série de irmãos, todos a lutar pelo seu lugar no mundo. Difícil ser notada.
Curso superior numa época em que era raro. Casamento, filhos, um por um. A cada um substituía-se o próximo. Cada um com a sua marca de nascença. Ordem é destino.
As infâncias felizes são todas iguais. Cada infância triste é triste à sua maneira.
O jogo do toca e foge. Agora dou e logo retiro. Narciso ferido.
A tensão irresolúvel entre a necessidade de validação pela autoridade e a feroz resistência contra todo o tipo de autoridade. O embate sucessivo e desgastante contra moinhos de vento.
Acordou com a boca seca a saber a cartão. Sem se lembrar bem onde tinha estado. Aos vinte anos somos imortais. Levantou-se, reconheceu o ambiente doméstico acolhedor em seu redor. Uma casa simples, com uma única divisão. O porto seguro de onde podia empreender as suas incursões no vasto mundo exterior.
Bebeu diretamente do pacote de leite, tentando matar a sede que o abrasava.
Tinha o exame oral daqui por algumas horas. O exame que iria decidir a sua continuidade no programa de doutoramento.
Foram muitos meses de intenso trabalho. Muitas aulas de tópicos avançados de Física e Matemática, conjugadas com a responsabilidade de dar aulas 12 horas por semana. Noitadas consecutivas para completar todas as inúmeras tarefas que cada cadeira exigia. A parte preparatória de um doutoramento feito nos EUA é um trabalho árduo. É uma espécie de corrida de obstáculos que testa não apenas o conhecimento mas também a resistência.
Os filhos não saem de dentro de nós. Nascem de um mistério que está para além e que nunca entenderemos. Nós caminhamos com eles ao colo mas são eles que nos levam e nós acabamos sós.
Os filhos serão sempre seres estranhos e nós rangemos os dentes, destilados de puro terror, do tremendo amor que explode no centro, e nos lança gemendo das escarpas aos abismos onde jurámos nunca ir.
A dúvida dissipou-se instantaneamente assim que o viu. Explosão de amor. Do tipo de amor mais puro. Daquele que se aproxima mais do divino. Não se pede nada em troca aos filhos. Quid pro quo polui, destrói. Tudo deve ser aceite como um bónus. Um sorriso aqui e ali. A enorme gratidão por poder banhar este pequeno ser com tudo o de melhor que temos para dar.
O amor das mães pelos filhos é selvagem, feroz, exclusivo. Torna-se integralmente investido nesta relação.
Mãe é dádiva. É sangue suor e lágrimas. Mãe carrega com um peso impossível sobre os ombros largos.
Ambos os pais vivem a redenção nos filhos. O desejo de os proteger das mesmas dores que eles próprios experimentaram é avassalador.
Os avós vivem uma segunda oportunidade.
A criança trouxe à tona uma ternura nela que ele não se recordava de ter visto antes.
Tratou de mudar de vida. Onde antes fora incerto e caprichoso, tratou de se tornar previsível e seguro. Os filhos são uma revolução nas nossas vidas. Obrigam-nos a crescer depressa.
Trocou a incerta vida académica por um trabalho seguro.
Durante anos labutou para proporcionar aos filhos o melhor de que era capaz.
Foram anos muito absorventes. Filhos são trabalho duro. E enorme recompensa. Vicejam até que eventualmente nos deixam. É a ordem natural.
Lançou-se no trabalho com a intensidade que o caracterizava. Nunca nada era suficiente. Cada tarefa era um degrau para algo maior, embora o topo da escada permanecesse sempre distante, como um horizonte que recua à medida que avançamos.
A perfeição, pensava, era o único objetivo digno, mas descobriu tarde que a busca pela perfeição pode ser uma forma cruel de auto-sabotagem. Aquilo que era feito com paixão rapidamente se transformava em obsessão, e o que deveria trazer realização apenas aumentava o vazio.
Era como se cada conquista fosse engolida por um poço sem fundo. "Lançava-se para a frente sem perceber que o verdadeiro inimigo não estava nas exigências externas, mas na voz severa que o habitava. No entanto, por mais que lutasse contra essa força, ela também era sua fonte de energia, o motor que o impulsionava. Parar significaria confrontar aquilo que ele mais temia: a sensação de não ser suficiente.
Faltou-lhe demasiadas vezes. Há muito que tinha deixado de se sentir amada. A vida encarrega-se de destruir aquilo fomos tentando construir.
Vamo-nos enredando nas nossa teia de contradições. Esquecemos que o outro existe. Estamos demasiado ocupados para nos apercebermos dos sinais.
O ressentimento vai-se acumulando até se tornar avassalador.
Ela foi-se desligando dele. Fez o luto da relação. Quando ele se apercebeu já era tarde. A gota tinha feito transbordar o copo.
A enorme dor que se seguiu, a busca incessante pela justificação, por uma redenção mágica. Tentar encontrar o momento exato que não existe, a causa única que nos escapa.
Seguiu-se a fúria, o profundo ressentimento, contra ela, contra o mundo, contra si próprio.
Seguido de anos de vida petrificada. O luto demorado.
O reaprender a depender apenas de si próprio e a ter quem dependa exclusivamente de si.
Mas a vida encontra sempre forma. Ressurge nos ambientes mais inóspitos.
A redenção é possível. A distância coloca tudo em perspetiva.
Nos momentos mais escuros, o silêncio torna-se um eco ensurdecedor. Não há nada mais angustiante do que confrontar a própria solidão, como se fosse um espelho que nos devolve um reflexo irreconhecível. Somos ilhas e sempre seremos.
Mas no meio desse vazio, há também a oportunidade de nos reconstruirmos. Deixamos cair as máscaras, os papéis que desempenhamos para os outros, e descobrimos quem realmente somos quando ninguém está a olhar.
A compaixão, percebi, é a força mais subestimada do universo. No início, achava que a força estava na resistência, no endurecimento. Mas ao longo dos anos, fui percebendo que é na vulnerabilidade que encontramos a verdadeira coragem.
Mostrar o nosso lado mais frágil é abrir uma porta que outros raramente ousam atravessar. É nessa troca de fraquezas que o amor floresce, como uma planta tenaz que brota em solo rochoso.
À medida que os anos se acumulam e o horizonte da vida se estreita, percebo que a busca não era pela felicidade, mas pela plenitude. Felicidade é fugaz, escorrega pelos dedos. Mas a plenitude é como um rio profundo e constante que nos sustenta, mesmo quando as marés são turbulentas. Plenitude é saber que, apesar de todas as falhas, demos o melhor de nós no tempo que nos foi dado.
Se pudesse voltar atrás, não mudaria os grandes momentos, mas talvez fizesse mais pausas para contemplar os pequenos. Quantas vezes olhei para o céu sem realmente vê-lo? Quantas vezes segurei uma mão sem sentir sua textura? A vida é um mosaico feito de peças diminutas, e só no final percebemos o padrão que formam.
Agora que a vida se esgota, estou grato por ter amado profundamente e ter sido amado da mesma forma. Nos meus anos mais avançados encontrei finalmente resolução e paz. Olho com muita serenidade para todo este tempo que passou.
É esta a medida da nossa vida: a marca que deixámos na retina daqueles com quem nos cruzamos.
Um pequena palavra caridosa que alegrou o dia de alguém. O cheiro de uma rosa que colhemos no nosso jardim e oferecemos a quem passa.
As histórias contadas aos filhos ávidos antes de adormecer. A ternura de um gesto simples mas carregado de significado para quem o partilha connosco.
A beleza consiste em ter tocado a vida dos outros.Cada gesto de bondade, cada ato de amor, tem a sua forma de se perpetuar no tempo, e dessa forma a nossa essência continua a viver mesmo depois de partirmos.
Sou uma nota que ressoará por um tempo, até desaparecer no silêncio infinito do universo. E isso é belo.
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
- Vinícius de Moraes
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