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Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
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"No meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra."
Ao longo das minhas crónicas tenho usado muito a Corrida em Trilhos de Montanha como Metáfora para a Vida.
Como qualquer metáfora, é uma simplificação da realidade. A vida é sobejamente mais complexa do que as corridas.
E daí talvez não seja.
Será que somos nós que a complicamos desnecessariamente?
Numa corrida de 100 quilómetros na Serra ou na Montanha, com uma duração de cerca de um dia inteiro, acontece muita coisa.
Logo nos primeiros kms, quando tive que subir pela escadaria e pelo trilho até à Cruz da Penha, pensei que ia gripar os pistões todos. Cheguei lá a cima completamente ofegante, e esta era apenas a primeira subida de muitas. Passou-me logo pela cabeça que de forma alguma conseguiria completar esta prova.
Mas estava uma noite agradável e prossegui. Agora tinha uma descida suave pela frente, e novamente uma subida até chegar ao Centro Vicentino da Serra, no km 9.
Fui-me sentindo progressivamente mais forte.
Como quando crescemos do gatinhar para os primeiros passos incertos.
Até Castelo de Vide ainda passei pelo PAC (Posto de Abastecimento e Controle) de Carreiras. Todo este troço se faz de noite, boa parte do tempo com a fantástica vista noturna das luzes de Marvão ao nosso lado direito.
Muita calçada medieval que faz uma enorme mossa nos pés, de tão dura.
Em Castelo de Vide, ao km 29, encontrava-se um PAC exíguo, ao ar livre, mas com voluntários entusiastas que me trataram bem. Soube que teria uns 8 atletas atrás de mim.
Comi uns pedaços de banana, tomate com sal, tostinha com mel, um gole de coca-cola e saí novamente para dentro da noite, em direção ao PAC4 em Portagem no sopé de Marvão.
Desde o início da prova que uma das minhas maiores preocupações consistia em não ser barrado em nenhum abastecimento por não cumprir os tempos de corte.
Em 2 das 4 Ultras em que tinha participado desde o início da época de 2023, tinha chegado à meta com meia hora de atraso sobre o tempo limite. Felizmente tanto no Piódão como na Ultra da Geira Romana as organizações tiveram a gentileza e compreensão de me classificar, uma vez que cumpri as barreiras intermédias.
Isso tinha acontecido na provas mais recentes, depois de ter estado parado com a minha terceira infeção de Covid-19. Das 3 vezes que tive Covid, saí dele combalido e bastante afetado na minha capacidade de correr. Sobretudo ao nível cardíaco e muscular.
Portanto ter conseguido terminar essas 2 Ultras soube a maior conquista do que muitas outras que anteriormente tinha feito em muito menos tempo.
Tentar uma prova de 3 dígitos nestas condições afigurava-se para mim um desiderato muito fora do razoável. Mas como os muitos anos de experiência já me ensinaram, à partida nada está perdido ou ganho. Tudo se resolve no terreno.
E por vezes surpreendemo-nos.
Para além disso eu sentia como imperioso terminar esta prova. Isto porque o verdadeiro objetivo estava mais à frente, no Grand Trail de Courmayeur que terá lugar em Julho. Essa prova terá 100 Km de lonjura mas com 7.900 metros de desnível positivo!
Logo, para ganhar confiança eu precisava mesmo de terminar os 108 km com 5.500 mD+ do UTSM 2023.
Cheguei a Portagem, km 45, com o nascer do dia. A barreira horário aqui era de 11h de prova ou 9 da manhã. Cheguei quase duas horas e meia antes, portanto com uma grande folga.
Esta folga era estratégica. Eu sabia que as dificuldades só começariam verdadeiramente a partir daqui. Na verdade estes primeiros 45 km são bastante monótonos. Sobretudo estradões e inclinações pouco acentuadas, juntamente com o fresco da noite.
Pouco depois de sair de Portagem começam os primeiros verdadeiros desafios.
Subimos a Serra com Marvão pelas costas. Marvão é verdadeiramente imponente. É pena não estar à nossa frente para que possamos deslumbrar-nos a cada passo.
No PAC5 de Porto Espada, km 53, fica situado o ponto de mudança de roupa. Troquei quase tudo, exceto os ténis e os bastões. Roupa seca sabe sempre muito bem, mesmo que alguns kms decorridos voltemos a estar encharcados em suor.
Algum tempo depois chego a S. Julião, km 71. Encontro lá novamente o Eduardo Santos que me faz uma grande festa.
Muito mais tarde, novamente com o Eduardo Santos
Como pouca coisa e lanço-me novamente ao caminho. A prova dos 50k+ começa em Portagem e passa também por aqui.
Poucos quilómetros volvidos sou ultrapassado por 4 atletas dos 50K em ritmo acelerado. Devem ir a uns 10 km/h em ligeira subida. São todos magros e levam muito pouco material para voarem mais rápido.
Na curva volto a passar pelo Zé, das Fotos do Zé. Ele diz-me que eles devem ter cerca de 24 kms. Ora passaram 2 horas e meia desde a partida das 9 horas.
Este troço entre S. Julião e S. Mamede (Cruz do Cume) é longo e sobretudo inclinado. Demora bastante tempo a fazer.
Até aqui, ao longo de toda a prova, tenho sentido tudo e mais alguma coisa. Ora me dói o aquiles, ora os gémeos, ora os quadriceps, ora os pés etc, etc, etc. Felizmente vão alternando. Cada dor esconde outra.
Nunca até agora tinha feito uma prova com o peso de 83 kgs. O meu normal aqui há uns anos era andar pelos 71 kgs.
A foto não me favorece, mas a única coisa que me favorece neste momento é perder 12 kgs
Finalmente chego à Cruz do Cume. Está imenso calor. Como pouco, bebo muito.
Aqui a prova dos 50K+ separa-se dos 100K+
Nós seguimos para a esquerda.
Algo em mim deve ter apodrecido. As moscas não me largam. É verdadeiramente irritante.
O próximo troço até Alegrete é longo e duro. Apanhamos uma subida por um corta-fogo com uma inclinação acentuadíssima. O calor faz mossa. Nos altos ainda sopra uma brisa, mas nos vales assamos.
Porra para as moscas! Enfio a cabeça dentro de água, faço trinta por uma linha mas não me largam.
Vou ultrapassando e sendo ultrapassado por duas espanholas de Badajoz. Nas subidas são muito mais fortes do que eu (eu forte só na barriga). Tenho mesmo que me ver livre destes 2 garrafões de 5 litros que trago em redor da da cintura.
A descer eu passo-as. Primeiro porque o peso não me custa tanto e depois porque elas são umas medricas de primeira. Descem de rabo. Chega a ser um espetáculo cómico de se ver. Mas quando se começa a subir, aí quem se ri são elas.
Chegamos finalmente ao PAC8 em Alegrete, km 84. Sou recebido em festa pelo Miguel Pinho de O Mundo da Corrida. Diz-me que tenho 5 horas para chegar a Reguengo, a 16 km de distância. O problema não são os kms. O problema é a maldita inclinação.
Quando dou por mim, os meus bastões tinham sumido. Mando um berro e as espanholas estacam. Uma delas por engano levava na mão os meus e tinha deixado os dela. O calor também já lhes fritou a mioleira, como a mim de resto.
Bem, não adianta ganir, o melhor é seguir em direção a Reguengo porque a folga horária tem vindo a diminuir e neste momento só tenho 90 minutos de folga sobre a barreira horária.
Não há palavras para descrever o sofrimento do troço entre Alegrete e Reguengo. Se a prova tivesse começado uns 40 kms antes, seria um troço bonito de fazer, com umas vistas belíssimas, com uns single-tracks fantásticos, serpenteando entre regatos e no meio de árvores típicas. Assim é apenas sofrimento puro. Todos os poucos atletas com que me cruzo trazem uma cara de Cristo crucificado. A minha deve estar igual.
Sou obrigado a molhar os pés vezes sem conta nos ribeiros. Não têm a oportunidade de secar. Isso faz com que a sola do pé se vá progressivamente engelhando e criando umas pregas muito dolorosas.
Anoitece. Ligo o frontal. Começo finalmente a ouvir o ladrar dos cães à distância. É sempre bom sinal. significa que me estou a aproximar de uma povoação.
Finalmente entro em Reguengo. São agora 9 horas da noite, e tenho 23 horas de prova. Chego uma hora antes do tempo de corte.
Estou a descer por uma vereda estreitinha quando ouço "Olhó Matos!!!" Reconheço imediatamente a voz do Francisco.
Tenho ali uma comitiva de peso RUN 4 FUN à minha espera!!!
Reguengo, último abastecimento antes da meta.
Que malta fantástica! Não tenho palavras para descrever o que passou por mim quando senti todo este calor, carinho e animação à minha volta.
A Guida dá-me uma cerveja. Sabe-me divinalmente. É um bálsamo do céu. Todo o carinho e calor que sinto à minha volta são bálsamos potentes que me fazem esquecer todo o sofrimento.
Mas o vídeo feito na hora pelo Hugo demonstra a emoção do momento melhor do que palavras:
Carlos Drummond de Andrade, um dos meus poetas favoritos, escreveu:
"Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra."
O meu caso é o oposto:
O que eu nunca me esquecerei é que no caminho
estavam os RUN 4 FUN.
Quando chegar a minha vida de retinas tão fatigadas
eu não me esquecerei que no caminho
estavam amigos.
Estavam os RUN 4 FUN.
A receção em Reguengo, será para sempre inolvidável. E um ponto alto da minha vida.
E digo-o sem hipérbole.
As provas vão e vêm, tais como as pedras do caminho. Mas o que não desaparece é a amizade,
Sobretudo no tempo de minhas retinas cansadas.
E também tinha os meus bons amigos Luís e Rita Ricardo que desde 2012 me acolhem e acarinham no seu refúgio, sem esperar nada em troca, exceto um tempo bem passado e o reforço de uma amizade profunda.
Daqui até à meta é um percurso sem história. Não mais consegui correr e fiz os últimos 8 kms a andar em marcha rápida.
Cheguei finalmente ao Estádio, dei a meia-volta da praxe e ainda me consegui forçar a um trote trôpego.
Ainda me cruzei com o João Carlos Correia à entrada do estádio, ouvi o speaker aos gritos para me animar e recebi a medalha de cortiça.
Cruzar a meta tem um efeito milagroso em que geralmente nos esquecemos instantaneamente de toda a dor do caminho.
Tomei banho, comi alguma coisa, peguei no carro e fui para casa.
Este é um dos maiores insights que já li acerca da natureza/condição humana, senão o maior mesmo:
"A natureza humana é tal que a dor e o sofrimento - mesmo que sofridos simultaneamente - não se somam como um todo na nossa consciência, mas escondem-se, o menor atrás do maior, de acordo com uma lei definitiva de perspectiva. É providencial e é o nosso meio de sobreviver no campo. E essa é a razão pela qual se ouve tão frequentemente na vida livre que o homem nunca está contente. Na verdade, não se trata de uma incapacidade humana para um estado de felicidade absoluta, mas de um conhecimento sempre insuficiente da natureza complexa do estado de infelicidade; de modo que o nome único da causa principal é dado a todas as suas causas, que são compostas e dispostas numa ordem de urgência. E se a causa mais imediata de stress chega ao fim, ficamos surpreendidos ao ver que existe outra por trás; e na realidade uma série inteira de outras.
Logo, assim que o frio, que durante todo o inverno parecia ser o nosso único inimigo, cessou, tomamos consciência da fome; e repetindo o mesmo erro, dizemos agora: "Se não fosse a fome!..."
― Primo Levi, Se Isto é um Homem • A Trégua
A vida coloca-nos de facto pedras ao longo do caminho.
Mas há as pedrinhas, como as que recolho ao longo de uma prova destas de Ultra Trail, e os enormes calhaus que raramente nos caem diretamente em cima da cabeça.
A vida é curta para todos nós, mas o facto de desconhecermos o dia exato e relativamente longínquo em que terá um fim é imensamente protetor.
Mas por vezes o calhau surge repentinamente. Na vida de alguém que amamos. E aí as pedrinhas desaparecem todas. Não há pedrinhas, não há areia, não há pés engelhados, joelhos doridos, tendões massacrados. Há apenas o calhau.
A vida é um fenómeno misterioso e o amor uma força poderosa. No caminho também há muitas flores. Tentemos não nos desfocar das flores. É o que nos resta.
Chamonix 2015
Duas gotinhas de água:
"It's you and me
And if I only could I'd make a deal with God And I'd get Him to swap our places Be runnin' up that road Be runnin' up that hill Be runnin' up that building Say, if I only could, oh"
Nota prévia: este post foi publicado em Agosto de 2019. A informação que consta aqui poderá estar datada. Seja como for, informação atualizada poderá esr encontrada aqui: Toda a informação poderá ser encontrada nos seguintes links: ITRA Web Page ITRA Facebook
Esta crónica esteve quase para se chamar “És tu e o tralho!” mas como esse título não reflete o verdadeiro espírito do AXtrail preferi deixar de lado o trocadilho fácil e escrever algo um pouco mais sério. Aldeias do Xisto Na 6ª feira, dia 17/10/2014, saí de casa, levando a família, por volta das 18h15m. A viagem de 186 km até Castanheira de Pêra estava prevista demorar cerca de 1h45m e assim foi, sem qualquer incidente digno de registo. Fomos até ao secretariado, na praça da Notabilidade, levantar o Dorsal nº 52. A Go-Outdoor, entidade organizadora do evento, presenteou-nos com uma interessante surpresa: uma pequena árvore das espécies autóctones para plantarmos em local à nossa escolha. Depois aguardámos que a simpática família Ricardo, agradabilíssima companhia de diversas destas aventuras, viesse ter connosco para partilharmos companhia num jantar em restaurante local. Jantámos a horas um pouco tardias, um bitoque com batata frita, que no in
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Como se ultrapassa a adversidade? Onde vamos buscar as forças para persistir quando todas as fibras do nosso corpo nos ordenam que é altura de desistir? Dizem que a fadiga é uma ficção que o cérebro engendra para ordenar ao corpo que é altura de parar, antes que algo irreparável o pare definitivamente. Talvez a realidade seja toda ela uma ficção criada pela nossa mente. Ou então é um enredo que o nosso cérebro constroi, dinâmica e interactivamente, para se conseguir orientar num mundo complexo e desprovido de um propósito independente da nossa vontade. Há investigadores que dizem que temos um cérebro “social” composto por módulos, com diferentes funções. A comandar esses módulos (ou ser comandado por eles) poderá, ou não, existir uma identidade denominada o “eu”, o “self”, a “consciência”, ou o que lhe queiramos chamar. A razão porque construimos percursos e prosseguimos objectivos é porque necessitamos de um ou vários propósitos que nos orientem nesta vida. Como não so
Primeiros 100 km da prova, até a bateria do Garmin morrer... Lector in fabula Sempre preferi os loucos… Abro os olhos sobressaltado! Onde estou eu? Como vim aqui parar? Olho lentamente em redor… aos poucos as imagens vão-se fixando e a memória vai retornando... Estou na Ilha da Madeira, a subir vagarosamente para o Pico Ruivo. Devo ter cerrado os olhos momentaneamente e passado instantaneamente pelas brasas. Que horas são? Olho para o Garmin. São 11h40. Ainda só estou a subir há 20 minutos. Tocados pelo fogo. O truque é nunca parar. Custe o que custar, continuar sempre a colocar um pé adiante do outro. Subir degrau a degrau. É como andar de bicicleta. Se pararmos caímos. “Os que levam a vida inteira como alcoólicos e neuróticos são mais interessantes, as pessoas falam deles e contam as suas anedotas, enquanto os tranquilos só fazem o seu trabalho.” - Joyce Carol Oates Esta subida, este quilómetro vertical, está-me a custar muito mais do
Imagem do Blogue de Maria Tadeu Esta rúbrica é dirigida aos Trail Runners que se estão a iniciar na modalidade e que ainda não têm prática de uma vertente muito interessante das corridas em trilhos: o "solo duro". O que é o solo duro? "Solo duro" é a expressão que indica o pavilhão gimnodesportivo, ou outras instalações semelhantes, disponibilizado pela organização, para que os atletas possam ter um local onde pernoitar antes e depois de uma prova. É solo duro, porque não inclui camas. Na melhor das hipóteses conseguem-se umas esteiras usadas na prática da ginástica e que se encontram disponíveis no pavilhão. Quanto a mim, trata-se de uma excelente opção para pernoitar, por várias razões. A saber: é gratuito; conveniente; normalmente encontra-se perto da linha de partida; e propicia o convívio. Claro que tem inconvenientes, sobretudo para os mais sensíveis. São locais agitados e barulhentos: há malta (como eu, por exemplo) que, ao ressonar, debit
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